Fazem um trabalho que ninguém quer fazer, que a sociedade delega noutros. São trabalhadores invisíveis, escondidos por detrás de paredes, longe dos centros das cidades: nas orlas da dignidade humana. São peças de um sistema mecânico e altamente automatizado de conversão de vida em morte, que termina no prato da sociedade.
Diante de um tapete que não pára, transformam seres vivos em pedaços de carne para consumo humano, que convenientemente acabam no talho local, pendurados num gancho ou anti-septicamente plastificados, à disposição nas prateleiras do supermercado mais próximo. Mas por detrás dessas paredes, muito acontece que fica por contar, que não vem no rótulo da embalagem do supermercado nem nos é relatada pelo talhante local que prepara a carne para os seus clientes.
Para o animal, cuja vida é tragicamente terminada e cujos berros e sofrimento não ecoam além das paredes, termina aí. Outros seguir-lhes-ão neste tapete aparentemente interminável de extermínio. Mas não serão as únicas vítimas desta industrialização da morte.
Imersos num meio de trabalho inerentemente violento, também os trabalhadores dos matadouros são vítimas deste sistema. Ignorados pela maioria, e até desumanizados por alguns, sofrem às mãos da monotonia, do automatismo, da dessensibilização, da segregação e de todos os riscos inerentes a esta profissão.
Cada um de nós pode escolher comprar aquela embalagem de carne sem assumir a responsabilidade do que a sua produção poderá ter implicado. Conforme dizia o filósofo John Lachs, “a responsabilidade de um acto pode ser passada a outros, mas a sua experiência não”.
Essa é a experiência daqueles cujo trabalho diário consiste no acto repetitivo de matar um animal a cada dez ou 20 segundos, e centenas a milhares num dia, daqueles que os esventram, que os esfolam, que os esquartejam e que os preparam para os outros que os consomem.
Para o trabalhador, são meros números: carcaças a serem contabilizadas e a perfazer uma meta diária, que gradualmente os despoja do sentimento de compaixão que inicialmente lhes criava hesitação no movimento da morte, até que pouco dele reste e o seu trato embruteça, os seus movimentos se mecanizem e a sua humanidade entorpeça.
Se o traço mais nobre da humanidade é a compaixão para com os indefesos à nossa mercê, como dizia Charles Darwin, então falhamos para com estas pessoas, enquanto sociedade, ao impormos a progressiva perda desses valores.
Esta é uma ocupação que dificilmente não deixará mazelas nas pessoas que a mantêm durante anos ou uma vida inteira. E, de facto, o trabalho dos funcionários de matadouros está associado a uma das maiores incidências, no mundo laboral, de acidentes e lesões contraídas no trabalho, de problemas de saúde e trauma psicológico. Para além disso, este trabalho tem estado frequentemente associado a abuso de substâncias e até mesmo a uma maior propensão para o comportamento violento e criminoso.
Mas é um trabalho que tem de ser feito, dir-se-ia. Um mal necessário, talvez. Ou a única forma que alguns encontram de pagar contas legitimamente. Como dizia um funcionário de um matadouro em Santarém, em entrevista, “(...)ninguém se orgulha de trabalhar aqui (...) Muito poucos querem fazer uma carreira desta actividade.” E porque será?
Os leitores poderão ter dificuldade em conceber um cenário em que um pai ou uma mãe regressa a casa deste emprego para contar as peripécias diárias à família, durante o jantar. Ou em imaginar este pai ou mãe a orgulhosamente levar os filhos ao local de trabalho, para lhes mostrar aquilo que o ocupa diariamente e deixá-los experimentar as ferramentas do seu ofício. Se sentiste essa dificuldade foi porque já conseguiste olhar além da embalagem de carne e assumir parte desta experiência.
Mas as outras experiências continuarão vedadas a cada um de nós, a mim e a ti. São as experiências daqueles cuja profissão é a morte, que matam por nós.