Pode um palacete de 1884 viver no Porto de 2019?
Foi desenhado para albergar uma entidade bancária e hoje quer ser um “alojamento local de luxo”. O Torel 1884 procura “mostrar a riqueza e a diversidade que os portugueses trouxeram ao mundo”, num palacete em plena Rua de Mouzinho da Silveira, no Porto.
A um palacete de final do século XIX, recuperado e com traços originais preservados, não faltam encantos: as paredes de pedra, as escadas de dimensões como já não se fazem, as balaustradas de madeira a rodopiar andares acima e, no caso do novo Torel 1884, uma clarabóia monumental. É assim que começa a estadia na mais recente unidade deste grupo de hotelaria: de pescoço curvado, olhar voltado para cima, um “Uau” contido. O ano que lhe dá nome é também o ano de construção deste palacete da Rua de Mouzinho da Silveira, a 500 metros de outro edifício emblemático, a Estação de São Bento, no Porto.
Há plantas de enormes folhas verdes a dar as boas-vindas a quem entra, uma obra a dois tempos de João Pedro Rodrigues e uma recepção quase invisível — parece ser esta a tendência, esconder as pistas que apontam para um hotel. Aqui, no piso térreo de um edifício construído para ser um banco, é-nos entregue uma pesada chave com um palmo de comprimento — parece capaz de abrir um portão — e uma etiqueta com o número 10 e a palavra “Porcelanas”. Está na hora de ignorar o elevador e subir até ao segundo piso, que representa a Ásia.
No Torel 1884, vai contando Gonçalo Coutinho, director, a decoração de cada um dos andares corresponde a um continente ao qual os portugueses conseguiram chegar — África, América e Ásia — e aos produtos que daí trouxeram para Portugal, através de rotas comerciais. O conceito “serviu para encontrar cores e texturas que dessem uma homogeneidade aos interiores”, bem como para “mostrar a riqueza e a diversidade que os portugueses trouxeram ao mundo num determinado momento da história”. Nos quartos do primeiro andar há referências a produtos sul-americanos e, no segundo, as porcelanas e as especiarias imperam. “Ao escolhermos o tema dos descobrimentos portugueses — ou do ‘achamento’ —, quisemos enaltecer a incrível diversidade das terras por onde os navegadores portugueses passaram”, explica — e não “provocar nem estimular a controvérsia” em torno do tema.
Mapas-múndi, tapeçarias (no chão e nas paredes), plantas e mobiliário de madeira em tons claros, bem como a ausência de elementos tecnológicos — não há, à vista, televisões nem sequer cartões electrónicos de acesso aos quartos, por exemplo —, fazem esquecer, momentaneamente, que o ano é 2019. O ambiente do segundo piso ajuda: espalhados pelas muitas prateleiras e mesas estão mais de 3000 livros, comprados em alfarrabistas. Obras de Raul de Caldevilla, António Quadros e do Padre António Vieira partilham o espaço das estantes com peças de porcelana chinesa e outros livros de autores estrangeiros.
As portas dos quartos — 12, no total —, em madeira pintada de branco, são as originais e essa patina é visível. As maçanetas, aqui não apenas com um carácter decorativo, são réplicas daquelas que abriram e fecharam as portas do antigo banco desde o século XIX. É a idade centenária do prédio que explica o pé-direito palaciano dos quartos. No Porcelanas, o azul e o branco são as cores predominantes, presentes nas paredes, nos cortinados, nas portas forradas dos armários, na banheira encimada por uma obra de Jorge Curval e na própria cama, king size e com direito a dossel. Não falta conforto, nem luz natural. Do outro lado das janelas altas, também de madeira e também brancas, está a Torre dos Clérigos, encavalitada por cima de várias camadas de casas. E gruas, mais especificamente sete, a pairar sobre as ruas de Mouzinho da Silveira e das Flores. É o Porto de 2019 a espreitar.
O Torel 1884 não é um hotel, mas sim um “alojamento local de luxo”
O palacete da Mouzinho da Silveira foi o primeiro edifício que Ingrid Koeck e os sócios do grupo Torel Boutiques visitaram no Porto, aquando da decisão de abrirem um hotel na cidade. E isto antes ainda de conhecerem o edifício austero do tempo do Estado Novo, na Rua da Restauração, que viria a albergar o Torel Avantgarde, a operar desde Setembro de 2017. A austríaca não mais esqueceu o prédio centenário no rés-do-chão do qual falou com a Fugas, no bistrot Bartolomeu, e não desistiu da ideia de o transformar num “alojamento local de luxo — não num hotel”. “É muito exclusivo, mesmo no centro da cidade”, define.
Ali ao lado, na Rua das Flores, estão a ser concluídos os 11 apartamentos que completam o conceito do Torel 1884. Mas as novidades do grupo não ficam por aqui e, até ao final do ano, está prevista a abertura do terceiro Torel do Porto, desta feita na Rua de Entreparedes, bem perto da Praça da Batalha. “São todos projectos muito diferentes entre si, mas com um objectivo comum: honrar o espaço”, resume Ingrid.
A garrafeira do Bartolomeu é o exemplo mais paradigmático desta que foi a preocupação do projecto em reabilitar o palacete. Atrás do balcão de madeira do bar, uma porta de ferro entreaberta deixa adivinhar que ali funciona a garrafeira da casa. O que não percebemos imediatamente é que naquele mesmo espaço funcionou um dos cofres do banco — o que explica as grossas paredes de pedra, o pé-direito mais baixo e os cofres agora recheados com garrafas de vinho. O espaço, assegura o gestor Gonçalo Coutinho, está aberto aos hóspedes e aos clientes do bistrot, que serve pequenos pratos doces e salgados para acompanhar uma bebida. E, no futuro, será o local escolhido para as provas de vinho.
É também no Bartolomeu que é servido o pequeno-almoço, não em versão buffet mas sim por pedido prévio. Na noite anterior, os hóspedes são convidados a partilhar com a equipa da recepção as preferências do pequeno-almoço, escolhendo entre opções mais tradicionais e mais saudáveis: vários tipos de pão e de queijos, mini croissants, panquecas e frutas, ovos e outros salgados. Evita-se, assim, o desperdício de alimentos e bebidas e agrada-se a quem escolheu o Torel 1884.
A Fugas esteve alojada a convite do Torel 1884 Suites & Apartments.