E se uma comunidade ajudasse a definir o perfil do seu autarca?
Experiência em Itália é uma das seis que servem para estreitar a colaboração entre poderes públicos e sociedade civil, no âmbito da iniciativa Municípios em Transição. Em Telheiras, Lisboa, vai abrir um centro de recursos partilhados.
Cristiano Bottone diz, a brincar, que não sabe se vai sobreviver às próximas eleições locais em Valsamoggia, um município do Norte de Itália onde a sua equipa, que trabalha com a autarquia em processos de transição, pôs habitantes locais a debater e definir o perfil ideal de um candidato à edilidade. Valsamoggia alberga uma das seis iniciativas piloto escolhidas pela rede global Transition Network para o projecto Municípios em Transição, no qual, para além de acções concretas visando a sustentabilidade económica, social e ambiental das respectivas comunidades, se procura principalmente afinar uma metodologia de trabalho que facilite e torne mais eficaz a colaboração entre as entidades públicas e a sociedade civil.
A experiência decorre em São Paulo, num "ecobairro"; na cidade-jardim de Kipest, na Bulgária; em Santorso e Valsamoggia, Itália; em La Garrotxa, na Catalunha, Espanha; e no bairro de Telheiras, em Lisboa, que recebeu na semana passada um encontro de avaliação do que tem sido este Municipalities in Transition , iniciado, no terreno, no início do ano passado. Na prática, o projecto assumiu-se como um desafio à capacidade de colaboração entre sociedade civil e poderes públicos. Entidades que, segundo a coordenadora global, Ana Huertas, reagem muitas vezes com incompreensão, e até resistência, a estas iniciativas cidadãs ou, pelo contrário, até querem ajudar, mas não sabem bem como.
A fazer doutoramento em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável na Universidade de Lisboa, Pedro Macedo candidatou-se a uma vaga de investigador neste projecto e, enquanto observador-participante, vai desenvolver a sua tese a partir desta experiência. Activista com caminho feito nas áreas da educação ambiental e da participação cívica, Macedo acredita que a afinação de um modelo de trabalho simples, compreensível pelos vários actores, é essencial para evitar dispersão de esforços. "Hoje estamos soterrados em alternativas positivas - há uns anos estávamos esmagados pelos problemas - mas é preciso alguma sintonia para não ficarmos perdidos nas soluções", afirma.
Assim, enquanto em Portugal se discute a descentralização de competências do Estado Central para as autarquias, nos Municípios em Transição (MiT, na sigla inglesa), o nível de subsidiariedade é ainda maior e discutem-se formas de partilha de competências entre estes e organizações locais, para levar a cabo iniciativas capazes de induzir, rapidamente, uma maior sustentabilidade. E o que Cristiano Bottone e o seu grupo estão a fazer é ir ainda mais além. Valsamoggia, com 30 mil habitantes, resulta da agregação de cinco municípios, numa região a norte de Bolonha, e ele, que trabalhava já em processos de transição num deles, assumiu o desafio de usar estes temas para tentar criar “comunidade” onde ela não existia.
Que competências deve ter um autarca?
O seu grupo criou o Valsa TV, um canal local em que, por exemplo, se mostram e discutem os impactos dos projectos de transição já levados a cabo, como uma escola construída com os princípios da arquitectura passiva, e por isso energeticamente eficiente. “É uma forma de pôr as pessoas a discutir, e de lhes dar consciência do impacto de medidas como esta”, explicou o italiano ao PÚBLICO. E pela Valsa TV há-de passar também a divulgação da outra acção em curso, que põe vários actores locais a fazer um diagnóstico da situação do município e a definir que competências deveriam ter os candidatos que em Maio vão a votos, quer do ponto de vista da compreensão dos grandes desafios globais, quer do ponto de vista das necessidades locais.
Os partidos que se interessarem por este trabalho - e que vão ser chamados a participar no processo - podem ter uma certeza: a Valsamoggia em Transição vai garantir formação em algumas das áreas definidas no perfil criar, para que os candidatos não se fiquem apenas pelo que aprendem nas respectivas profissões ou “na escola dos partidos”. Bottone assume que “não pode mudar a Constituição nem a forma como as pessoas são escolhidas pelas forças que vão a eleições, mas acredita no poder que a informação gerada a partir da discussão pode dar aos eleitores, tornando-os, espera, “mais exigentes”. “Os partidos vão ser confrontados com isto e tomarão as suas decisões”, conclui.
No limite, os partidos até poderão ignorar estas movimentações estranhas às suas lógicas. Que não são muito diferentes das lógicas e processos, normalmente conduzidos de cima para baixo, próprias das democracias representativas. Mas a acção testada em Valsamoggia não deixa de ser um apelo à participação eleitoral, contrariando a abstenção, um princípio que atravessa as restantes iniciativas do MiT, nas quais se tenta mudar o ambiente social em que vivemos, e retirar os cidadãos de um papel passivo, expectante da iniciativa das autoridades, para os envolver nos processos e em projectos concretos, que conduzam a uma mudança na forma como vivemos.
Procurar a energia na comunidade
Para chegar lá, não basta convocar cidadãos para uma reunião e discutir um determinado projecto ou plano. A coordenadora do MiT, a espanhola Ana Huertas, assinala que é preciso esbater a “relação de poder”, e perceber onde está, na comunidade, a energia necessária - pode ser numa pessoa, numa associação, numa IPSS - para alavancar, com a sua intervenção, as iniciativas, tornando-as mais efectivas com o mínimo de recursos e de tempo. Ao trabalhar a uma escala municipal (ou de freguesia, de bairro), o MiT procura garantir um maior envolvimento da população, factor essencial, garante, para que esta sinta o problema, e a solução, como seus, e tome mais rapidamente a iniciativa.
Num território de vulcões encostado aos Pirenéus, na Catalunha, Erika Zaraté e o grupo La Garrotcha Territori Resilient procuram dar novas ferramentas para que os poderes públicos desta comunidade de 21 municípios e um total de 55 mil habitantes consigam resolver alguns dos seus problemas, comuns a tantos outros locais do planeta. Entre eles estão o desemprego feminino, a presença de indústria poluente em conflito com espaços naturais classificados e a exclusão social de minorias alimentadas pelas recentes vagas de emigração, entre outros.
Ao PÚBLICO, Erika, membro da cooperativa Resilient Earth, explica que uma das tarefas do projecto passou por formar a administração regional para uma visão holística, integrada, do impacto das suas decisões. Num território que já aprovou um documento estratégico sobre resiliência, aceitou-se que cada acção na área do ambiente, por exemplo, venha acompanhada de uma antevisão do seu contributo para a sustentabilidade económica e social, e, da mesma forma, que uma medida económica do poder regional integre os aspectos ambientais e sociais na sua discussão, para garantir que os vários departamentos estão a trabalhar para um mesmo objectivo.
Os anos que passaram desde Paris mostram que é difícil, apenas com apelos globais, e mesmo perante cenários dantescos, mudar comportamentos a uma escala generalizada de modo a cumprir os exigentes objectivos do acordo alcançado e alcançar o nível de corte de emissões de gases com efeito de estufa que permitam conter o aumento da temperatura do planeta. As mudanças em larga escala - como a que vem acontecendo no sistema energético com a pressão sobre os combustíveis fósseis - são urgentes e necessárias, mas ficar à espera que estas se generalizem, mantendo a vida que levamos e o business as usual seria, na lógica da Transition Network, o pior que as pequenas comunidades poderiam fazer.
Partilha de recursos em Telheiras
Em Telheiras, populoso bairro da freguesia do Lumiar, em Lisboa, há quem já o tenha percebido, desde 2006, quando o movimento dava os seus primeiros passos a partir da iniciativa de Rob Hopkins em Inglaterra. Luís Pereira anda há anos envolvido em projectos de transição para a sustentabilidade na freguesia onde vive e trabalha, mas repara, olhando para trás, que havia nalguns projectos pouca gente de Telheiras e que estes atraiam essencialmente activistas de outras zonas de Lisboa e do resto do país, onde há várias iniciativas, com maior ou menor pujança e apoio, em curso.
Envolvendo associações, IPSS, projectos como o Re-food e a própria Junta do Lumiar, a Parceria Local de Telheiras surgiu em 2013, e em 2017 respondeu a um apelo da rede mundial sem saber, sequer, que estava a posicionar-se para poder ser escolhida para o programa MiT, como acabou por acontecer no início do ano passado. E, com o financiamento internacional, passou os últimos meses a alavancar dois projectos, como aconteceu com os restantes parceiros, explorando, como lhe foi pedido, uma metodologia de trabalho e de envolvimento dos agentes no terreno que, a seguir, possa ser replicada em qualquer parte do mundo.
No caso desta localidade da capital, a parceria tentou dinamizar, para além do que é habitual noutros concelhos, um projecto de hortas comunitárias em cinco escolas e uma IPSS, envolvendo alunos, professores, auxiliares destes serviços, paisagistas e os técnicos da junta e do município. Mais do que um aspecto didáctico e do apelo a uma alimentação mais saudável - há miúdos que passaram a gostar de rabanetes, pela simples razão de terem sido eles a plantá-los, nota - a acção, que vai prosseguir, mexeu com a forma como as crianças olham para os espaços verdes da escola. E fomentou convivialidades, como puderam ver pela adesão a um jantar no qual foram servidos produtos colhidos nestes espaços.
Como é suposto, cada acção tenta alargar ao máximo o seu impacto. Numa horta geométrica, há miúdos que aprendem com os professores sobre círculos e triângulos, e o Re-food anda por ali a pregar à comunidade sobre o impacto do desperdício alimentar, ensinando os participantes a mitigar esse problema. E, já que se fala de desperdício, ele é precisamente o alvo do segundo projecto alavancado a partir do MiT por esta parceria local de Telheiras: o Centro de Recursos Telheiras Sustentável, ainda em instalação.
Inspirado na economia da partilha, o centro vai fornecer, em regime de empréstimo ou aluguer de baixo custo, alguns equipamentos e ferramentas que muitos de nós compramos, mas usamos muito poucas vezes. Quem lá for há-de encontrar o típico berbequim - quantos haverá em Telheiras, usados para fazer um furo por ano? - mas também algo mais sofisticado, como uma tela e um projector, para quem precise de fazer uma apresentação. Para ajudar a acabar com o uso de plásticos descartáveis, haverá um kit de aniversários - com serviços de loiça reutilizáveis - e um kit para piqueniques. E quem quiser experimentar compostagem num apartamento, vai poder levar para casa, por três meses, um vermicompostor.
Esta insistência na sustentabilidade levará a que o centro possa também emprestar aparelhos para medição do consumo energético e das perdas de calor nas habitações, bem como kits para redução do desperdício de água, equipamentos caros, para uma família, mas que assim se tornam acessíveis a todos. A expectativa, nota Luís Pereira, é que os moradores ganhem consciência da sua pegada ecológica e que, com a informação que acabam por adquirir, possam convencer os vizinhos para mudanças de comportamento ou a realizar obras de adaptação, quando seja necessário.
“Isto põe vizinhos a falar sobre problemas que lhes são comuns, e é uma forma de fomentar o espírito de comunidade”, assinala. O português acredita, como os seus parceiros de tantos outros países onde a Transição está a acontecer à escala local, “que uma comunidade mais forte pode dar resposta, localmente, aos grandes desafios globais”.