O plástico que Ricardo tira do mar nunca mais voltará a ser lixo

Ricardo Ramos sempre quis estar no mar, entre o perigo e a surpresa que as marés trazem. Acabou por trocar a mochila cheia de perceves por uma cheia de plásticos e arranjou forma de os tirar de um ciclo que os leva sempre de volta às ondas. Desse lixo, se fez arte.

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Daniel Rocha

As falésias recortadas abraçam a praia deserta. Mar revolto num pedaço de costa selvagem que é ainda reduto de pescadores. Para pôr os pés na areia fina da praia do Giribeto, em Sintra, é preciso descer pelas rochas, enfrentar caminhos sinuosos, escorregadios e íngremes. “Então, mete medo?”. Mete, pois.

Ricardo está como peixe na água. Afinal, o mar, a praia, as arribas são há muito a sua casa. Primeiro a luta fazia-se dentro de água, contra o mar, entre a surpresa das marés em busca de bons perceves. Depois, percebeu que os plásticos que enchiam as praias estavam a sufocar os peixes, a matar o oceano. E decidiu trocar a mochila cheia de perceves por uma cheia de plástico. Desse lixo, começou a criar peças de arte. E o artista fez-se Xico Gaivota.

Nestas arribas não há margem para grandes descuidos. No caminho até à praia, lá se cruza com um mariscador já com o sustento do dia às costas. “A que horas é a maré, Gonçalo?”, pergunta-lhe. “É às cinco para as 10h.”

Passa pouco das 9h, e Ricardo já desceu a falésia para ir apanhar os seus plásticos — “o meu marisco”. A esta praia chega pouco lixo doméstico, mas como as arribas são instáveis, os plásticos acabam por ficar completamente presos entre as pedras. Bastam dois passos na areia húmida para se começar a dar por eles. E lá de cima não se era capaz de avistar lixo algum. 

São cotonetes, garrafas de água, restos de redes de pesca, bóias. Trinchas, escovas de cabelo, bonecas, escovas de dentes, lâmpadas, aplicadores de tampões. Cartuchos de caça, velas, coisas mais estranhas como dildos ou garrafas de soro — carga perdida de um contentor que tem aparecido desde a Galiza à Costa Vicentina. Debaixo daquelas pedras, aponta Ricardo, está um pneu gigante que nunca mais vai sair dali. Mais à frente uma lanterna de mergulho. “E isto são as placas de aviso das arribas em risco da Agência Portuguesa do Ambiente”, repara enquanto apanha um pedaço e o atira para o saco de plástico, onde vai guardando o lixo recolhido. 

Tudo vai parar ao mar. “O oceano começa na retrete. Tudo o que se atirar para ali vai directo para o oceano.” E essa é a grande inquietação de Ricardo Ramos, 40 anos: saber para onde vai o nosso lixo a partir do momento que damos o nó num saco preto. “Expliquem-nos o que é que fazem com o nosso lixo.” 

Ele acredita que isto é tudo um ciclo: pode-se apanhar uma garrafa de água na praia, pô-la num embalão; ela vai ser reciclada e transformar-se num cotonete que vai voltar a enterrar-se na areia. 

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Xico Gaivota

Há dois anos foi um ano “terrível”, com muito lixo na Praia das Maçãs. Era época de Natal e, “por alguma razão”, Ricardo pegou nos filhos e foi com eles recolher lixo para com ele fazerem uns presentes de Natal. 

Era uma “brincadeira” que, às tantas, se foi tornando séria. “Eu sou mariscador e estou sempre ao pé do mar e vejo muita porcaria e faço muita porcaria”, assume. “Apanhei uma peça minha que me caiu de um barco passado dois anos e tal. Era minha, era uma peça especial feita quase por medida por mim”, conta. “E isso não teve piada nenhuma”, diz, às tantas, com os olhos postos na areia. 

A consciência — se se pode chamar assim — acordou naquele momento. Percebeu o imenso problema que todos os dias atingia a sua “casa”. Uma onda de lixo imparável. “Fiquei muito viciado no plástico em si, nestes bocados de plástico.” E começou a apanhar plásticos e madeiras que foi amontoando em casa, sem saber muito bem o que lhes fazer.

Acabou a fazer peças de arte que se tornaram o seu negócio: “Eu garanto que este plástico sai desse ciclo. Vão acabar por ficar penduradas numa parede”, promete. 
Ricardo nasceu e cresceu em Lisboa, mas sempre teve uma casa de família em Sintra. Quando teve o segundo filho, quis sair “da Lisboa infernal” e propôs à mulher trocarem o rebuliço da cidade pela quietude da vila. “Vivo muito bem sem a cidade, sozinho nas minhas arribas.” 

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Prefere as praias desertas, de difícil acesso, onde não chegam as campanhas de limpeza. Mas, de vez em quando, continua a ir com os filhos à Praia das Maçãs no Inverno quando está tudo “sujíssimo”. 

Mas é quase sempre uma tarefa solitária embora o filho mais velho, Francisco — sim, é por ele que o projecto se chama Xico Gaivota — goste de ir com ele para as arribas. 
Sempre gostou das artes e sempre esteve ligado a esse mundo porque o pai é escultor. Já desenhou tendas para eventos, fez modelagens 3D para arquitectura. Mas o trabalho no escritório, entre quatro paredes, nunca foi para ele. Ambicionava ter mais tempo livre, especialmente para os filhos. Quando eles estão na escola, Ricardo vai apanhar os plásticos e fazer os seus passeios. Está com eles até à noite e depois dedica-se a criar, a brincar com aqueles pedaços de plástico que já rolaram muito nas ondas e na areia, a sobrepô-los e a aparafusá-los.

Ricardo nunca tinha encontrado um material que o “desafiasse” tanto como o plástico. E acabou a criar um conceito: não parte o plástico — sempre que isso acontece nasce mais um problema —, não o pinta, não o cola. Usa-o exactamente como o apanha, nem sequer o limpa porque isso era apagar toda a história que vem agarrada aos materiais, diz. “Faz com que seja um desafio muito grande para mim”, admite. Gosta de descobrir a que objecto pertencera determinado pedaço, de onde vem, onde foi feito. Umas são mais fáceis do que outras — há caixas com caracteres chineses ou embalagens de lagostas do estado norte-americano do Maine de 2005. 

Começou a construir peixes. Eles acabam por ser “a linha da frente”. Todo este material está a invadir-lhes o espaço. É por isso que hoje considera já não fazer sentido ir apanhar perceves: com tanto lixo que tem de enfrentar, porquê estar ainda a retirar vida dos mares, tanto mais que a venda dos crustáceos já nem é financeiramente compensador? De vez em quando ainda se lança ao mar, mas só pela necessidade que tem de o “enfrentar”. 

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Do plástico nascem peixes

Depois de quase uma hora na praia a recolher plásticos, é hora de montar a mochila para subir a arriba e voltar ao atelier que montou na garagem da sua casa, em Colares.

O dia nem foi muito produtivo porque as marés tinham revolvido a areia e o lixo ou acabou soterrado ou voltou ao oceano. Um dia bom, diz, é quando carrega a mochila cheia de plástico — “tudo bem arrumadinho” —, mais dois sacos cheios pendurados de cada lado e mais uma data de tubos. 

Quando ainda sobra espaço na mochila, além dos plásticos que vai utilizar, recolhe outros plásticos e escolhe-os em função do prejuízo que provocam, do sufoco que podem causar aos animais: sacos plásticos, esferovite, garrafas, tampas, argolas fechadas. 

Não vai todos os dias apanhar lixo à praia, mas isso também depende muito do que está a fazer, das peças de que precisa. “Às vezes vou focado para apanhar peças amarelas ou peças verdes. Tenho objectivos”. Costuma ficar por ali, pelas praias de Sintra, mas de duas em duas semanas vai à Costa Vicentina. “Se eu precisar de peças perfeitas, vou à Costa Vicentina e, em dois dias, apanho 200 quilos de plástico numa área protegida. É uma vergonha”, critica.

Quando a porta sobe, há uma parede forrada com caixas, ironicamente, de plástico — “o que eu lutei para não as ter”, admite Ricardo — cheias de pedaços, separados por cores e por tamanhos. Há materiais que andam dentro das caixas há dois anos, porque Ricardo ainda não os conseguiu encaixar em lado nenhum. “Todas estas peças foram apanhadas por mim, por isso são muito preciosas”, diz. 

O processo criativo começa ainda quando está na praia. “No momento em que me baixo para apanhar o plástico já há todo um registo mental da peça. Depois é uma questão de ir procurá-la.” Enquanto apanha os plásticos, vai imaginando o que pode fazer com eles: uma barbatana, as escamas do peixe, um dente de tubarão.

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A partir do momento em que os recolhe, deixam de ser lixo. Prefere aqueles pedaços que já não tem as arestas muito vivas, que indicam que há anos e anos que rolam nas areias e é altura de os tirar do mar.

Às vezes tem desenhos feitos do que quer fazer. Outras vezes vai pondo as peças por cima umas das outras e as formas vão nascendo. Depois a parte da construção pode ser relativamente rápida: umas seis ou sete horas. “Qualquer peça fica bem, mas preciso da certa e preciso de escolha para ter a certa.” Demorou, por exemplo, oito meses a descobrir a “peça perfeita” para lâmina da faca preta com dois metros que tem pendurada na garagem e há-de ir ocupar a parede de uma cozinha.

Como é que estará o fundo do mar?

Quando começou a fazer os peixes, conta, guardava-os num “num sítio escuro onde ninguém os via”, até que um dia lhe pediram para os ver. “Eu não tinha intenções de nada disto. Não queria que soubessem que era eu”, diz Ricardo. Mas começou a partilhar nas redes sociais o que fazia e depressa percebeu que as pessoas não se importariam de ter um peixe de dois metros na parede de casa. As encomendas chegaram. A partir daí, começou a enviar peças para fora, para a Alemanha, para a França feitas de lixo apanhado na Praia das Maçãs. “Estou a exportar lixo das nossas praias para outros países”, brinca. 

“Toda a gente passou por estas peças e não lhes ligou nenhuma. Mas postas de uma maneira especial valem dinheiro. É esquisito”, diz Ricardo. 

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Além de vender as peças, começou depois a expor. Recentemente teve uma exposição no Espaço Santa Catarina, em Lisboa. Está à espera de saber se vai fazer uma exposição em Macau. 

Mas a sua prioridade, diz Ricardo, são os miúdos e os workshops que faz com eles nas escolas. Leva uns sacos com plástico e põe-nos a criar com eles.

É convidado para ir a várias partes do mundo apresentar o Xico Gaivota. Em Moçambique, por exemplo, fez uma tartaruga só com chinelos porque era o que mais encontrava por lá. “Fiz uma tartaruga com mais de 300 chinelos. Mas faltavam-me chinelos, então fui com mais dois rapazes a uma ilha e pedi-lhe que me apanhassem apenas chinelos verdes. Em duas horas e tal apanhamos 74 ou 75 chinelos verdes, fora as outras cores”, recorda. O quer serve para lembrar que este não é um problema de determinada zona do planeta. “Somos todos muito culpados”. 

“Quando vamos ao supermercado temos de parar de comprar este tipo de coisas”, diz Ricardo, olhando em volta para todas as caixas que tem na garagem. “Vamos ter de comprar menos, ser muito menos consumistas. Não dá para continuar com esta loucura”. Não há mais tempo. Se tudo isto aparece nas praias, como é que estará o fundo do mar?”

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O Xico Gaivota é também uma forma de retribuir o tanto que o mar já lhe deu. “Eu como mariscador e pescador já fiz muita asneira e já fiz muito mal ao mar”. O Xico Gaivota acabou por torná-lo num Ricardo melhor. 

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