Para quem faz videojogos em Portugal é difícil passar ao nível seguinte
Desenvolver um jogo para computador ou telemóvel não é brincadeira. Num sector que movimenta muitos milhões a nível global, a competição é feroz e as empresas portuguesas têm de se esforçar para sobreviver.
Os videojogos são uma das indústrias culturais que mais dinheiro movem em todo o mundo, com receitas acima dos grandes filmes de Hollywood. Em Portugal, no entanto, este é um sector que nunca conseguiu crescer a sério.
“Dizer que o mercado de videojogos em Portugal é pequeno é bastante simpático. Nunca somos considerados”, diz ao PÚBLICO Ricardo Cesteiro, co-fundador do estúdio Camel 101.“Não vou dizer que trabalhar em videojogos em Portugal é impossível, mas nem sempre é fácil.”
Aos 38 anos, Cesteiro é um veterano nesta área. Há 14 anos deixou um trabalho como consultor informático na banca para se arriscar a tempo inteiro na paixão dos videojogos. Em 2009, depois de uma tentativa falhada, ajudou a fundar a Camel 101, que é hoje uma pequena empresa com três pessoas a tempo inteiro. Desenvolve tanto jogos casuais (por exemplo, puzzles para encontrar objectos no fundo do oceano), como jogos de mistério com narrativas mais complexas.
“Há jogos nossos que chegam a ter 30 mil de unidades vendidas. Outros só cinco mil. Mas a partir de dez mil é bom para nós…”, diz Cesteiro. “Temos uma grande variedade de videojogos casuais, porque no começo não estávamos a fazer os jogos de que gostávamos. Estávamos a fazer os jogos que tínhamos de fazer: puzzles e coisas para um público mais abrangente.”
Não há muitos dados actualizados sobre o sector. O relatório mais recente, compilado pela Sociedade Portuguesa para a Ciência dos Videojogos em 2016, notava que o volume de negócios no país oscilava entre os seis e os 12 milhões de euros. Apenas 20% das empresas disse então fazer mais de 50 mil euros anuais. Um terço admitiu ter receitas inferiores a dez mil euros. Quase dois terços não tinham mais de três anos.
Portugal, contudo, até é um país de jogadores. Surge em 39.º na lista da analista Newzoo de países que mais gastam dinheiro em videojogos: só no último ano, 261 milhões de euros saíram do bolso dos portugueses para jogos digitais nos telemóveis, consolas ou computador. E, com o advento das lojas online, as equipas podem produzir jogos para todo o mundo.
Dois passos atrás
O primeiro projecto da Camel, que nunca chegou a ser concluído, era um first person shooter (um jogo de tiros na primeira pessoa) num universo de ficção científica. “Era um projecto grande demais para uma equipa tão pequena e com tão pouca experiência. Acabámos por dar dois passos atrás para começar a trabalhar em projectos mais simples, que conseguíssemos concluir e comercializar”, explica Cesteiro.
É preciso ter dinheiro para desenvolver protótipos, juntar uma equipa e ir aos grandes eventos no estrangeiro. “Temos de nos dar a conhecer. Estar presentes online, mas também ir a eventos relevantes para marcar reuniões com editores. Não se pode ficar escondido”, explica. “É verdade que agora é mais fácil ter ferramentas para disponibilizar directamente jogos online. Isso é bom, mas também traz mais competição.”
Cada jogo da Camel 101 demora entre dois a três anos a ser criado. Actualmente, o trabalho é quase todo feito pelos três membros da equipa, que colaboram via Internet. “Estamos espalhados pelo mundo. Eu estou em Portugal, o meu irmão está nos EUA, em São Francisco, e o nosso artista está na Croácia”, diz Cesteiro. Por vezes, contratam freelancers para tarefas específicas.
A nova aposta, que deve chegar às lojas online ainda este ano, é um videojogo de terror com o título inglês Those Who Remain ("aqueles que ficam"), baseado na ideia de que há algo perigoso, escondido, à espera no escuro de uma típica cidade norte-americana. Tal como o nome da empresa, os títulos dos jogos são todos em inglês. É uma tendência comum a outras empresas em Portugal.
Mundo em inglês
“É difícil identificar a produção que é feita em Portugal porque os jogos são todos criados para plataformas diferentes, e muitas empresas surgem com um nome inglês e todos os títulos em inglês”, diz ao PÚBLICO Nelson Zagalo, académico e presidente da Sociedade Portuguesa para a Ciência dos Videojogos.
Fun Punch Games, Nerd Monkeys, Rain Dance Lx e WindLimit são exemplos de outras equipas portuguesas. “Por cá, a cultura dos videojogos segue muito o modelo cultural que é vendido por Hollywood. Do ponto de vista económico, compreendo”, continua Zagalo. “As equipas querem fazer dinheiro e querem vender no mercado norte-americano, que domina as lojas online. E para entrar num país é preciso falar a língua desse país. E falar a língua também é cultura.”
Zagalo nota também que, durante a crise financeira, muitos produtores de videojogos desistiram da área ou foram para fora.
Os que decidem ficar
“O grande problema é que é preciso ter o investimento inicial para começar a trabalhar num jogo. Noutros países, há investidores e apoios de 50 ou 60 mil euros para empresas independentes de videojogos que queiram desenvolver um protótipo”. A avaliação é feita por Ricardo Flores, presidente da recém-formada Associação de Produtores de Videojogos, outra organização com o objectivo de promover o sector em Portugal. Flores trabalha na área há 15 anos, tendo ajudado a fundar várias empresas.
“O dinheiro tem de sair do bolso da própria equipa. De resto, os desafios são iguais em todo o mundo.”
Filipe Pina é dos que optou por ficar após um primeiro fracasso. Tinha deixado emprego em animação de televisão para ajudar a fundar a Seed Studios, no Porto. Acabou por encerrar a empresa por problemas de financiamento, em 2012, um ano depois de lançar o primeiro videojogo, Under Siege, para a PlayStation.
“Recebi várias propostas do estrangeiro, mas decidi ficar, ensinar na área e desenvolver o mercado em Portugal. Afinal, tinha experiência”, explica Pina, que também dá aulas sobre videojogos na Escola de Tecnologias e Inovação (ETIC), em Lisboa. “Há muitos cursos maus”, alerta. “Apesar de difícil, o conceito dos videojogos está na moda em Portugal. Só que com poucos profissionais na área, muitas das cadeiras têm docentes que nunca trabalharam em videojogos.”
Em 2013 voltou a insistir e criou a Nerd Monkeys. Desta vez, o foco da empresa, sediada em Lisboa, não são os videojogos de autor. “Desenvolvemos videojogos para fora, para outras empresas, para escolas...”, diz Pina. “Ainda não tivemos nenhum mega título que vendesse milhões. Temos o caminho e percurso normal de uma empresa a começar. Claro que há quem tenha sorte e venda logo muito, mas é como um escritor: geralmente demora tempo.”
O pior detective do mundo
Uma das apostas da Nerd Monkeys é uma série de videojogos para computador chamada Inspector Zé e o Robô Palhaço, que tem como protagonista “o pior detective do mundo”. Ao contrário do que é habitual nas produções em Portugal, foca-se na cultura portuguesa. A equipa descreve o Inspector Zé como “um homem tão rude e bruto que as suas testemunhas mais rapidamente preferiam ser atropeladas por um comboio de mercadorias em marcha lenta a serem entrevistadas por ele”.
O primeiro episódio da série, Crime no Hotel Lisboa, foi lançado em 2013 e vendeu quase 200 mil cópias, mas a procura está a abrandar. Com o segundo episódio, as vendas estão a crescer, mas lentamente.
“São fraquinhas, mas é conhecido”, admite Pina. “É uma caricatura ao Portugal dos anos 80. Há os anúncios aos pastéis de nata. Os táxis são pretos…” Não é um jogo consensual. “Ou se adora ou se odeia, porque é um humor muito próprio. Nos EUA não acharam piada nenhuma. Na Europa, a França e Alemanha gostaram muito”, diz o criador. “Hoje é politicamente incómodo fazer humor com minorias. Há linhas ténues entre o que é e o que não é aceitável. Mas nos anos 80 era diferente. ”
Deixar o emprego
Em Portugal, arriscar num videojogo diferente não é uma opção fácil. Muitas vezes, as empresas só conseguem com ajuda de prémios.
Ricardo Flores, o presidente da Associação de Produtores de Videojogos, é também um dos membros da Fun Punch Games, que criou Strikers Edge, um jogo inspirado no tradicional “mata”, mas com armas e guerreiros, e navios, bosques mágicos e glaciares como pano de fundo.
Foi a vitória na primeira edição dos prémios PlayStation, em 2015, que permitiu que a equipa se dedicasse a tempo inteiro ao projecto. “Quando começámos, éramos puramente amadores. Nenhum de nós trabalhava nos videojogos, mas com o prémio PlayStation despedimo-nos para nos focarmos no Strikers Edge”, recorda Tiago Franco, um dos fundadores.
Até agora, o jogo vendeu cerca de 40 mil unidades. A equipa diz que “não é muito, mas foi um bom começo”, o suficiente para pagar os custos “e sobrar um pouco”.
Uma questão cultural?
Para Ricardo Flores e Nelson Zagalo é fundamental que o Ministério da Cultura comece a promover mais o desenvolvimento dos videojogos. Dão exemplo de países como a Finlândia — o país de origem do jogo viral Angry Birds — onde há incentivos para o sector.
A nível global, esta é uma indústria que vale milhões. Em 2018, cerca de 2300 milhões de jogadores em todo o mundo gastaram perto de 138 mil milhões de dólares (121 mil milhões de euros) em jogos digitais.
“Todo o dinheiro que o Estado investe vai para o cinema ou para a televisão”, critica Zagalo. “Em Portugal o videojogo ainda é visto da forma errada. É uma área cultural. É difícil vender e produzir. Tem de existir um apoio cultural. Uma empresa faz um jogo, mas, se não funciona, não pode continuar.”
Filipe Pina, por seu lado, faz uma ressalva: “Era bom termos mais apoio, claro, mas não posso acreditar num projecto que só funcione com apoio do governo. Já há apoios da União Europeia."
O fundador da Nerd Monkeys argumenta que é preciso olhar para o sector com outros olhos: “O problema em Portugal é que há o estigma do joguinho, que diz que isto não é uma área interessante e só apela a crianças, quando é uma indústria que move milhões. É preciso mudar isso.”