O BE faz 20 anos. “Não estamos nada cansados, temos muito pela frente”
O PÚBLICO foi vasculhar o próprio arquivo, para seguir as pisadas da construção do Bloco de Esquerda. Há 20 anos, no primeiro dia do BE, era Miguel Portas quem dizia: "O BE é a esquerda que não está cansada, a que está disposta a construir o futuro.” Duas décadas depois, têm os bloquistas fôlego para outro tanto?
“O Bloco de Esquerda nasceu ontem.” A novidade já não era tão fresca assim, mas havia que assinalar a data. A 1 de Março de 1999, o PÚBLICO escrevia sobre “o primeiro dia do BE”, o partido que queria protagonizar "a grande transformação na esquerda nos últimos 20 anos". Naquela que foi a Assembleia Fundadora do partido, no Fórum Lisboa, antigo cinema Roma, seria Miguel Portas, um dos fundadores, a prometer: "O BE é a esquerda que não está cansada, a que está disposta a construir o futuro.”
Foi há 20 anos. Duas décadas com altos e baixos, a remar contra a maré ou apanhar a corrente. “A luta política, e a luta política à esquerda, é como as marés, há mar e mar, há ir e voltar. É assim que é a vida. O que interessa é que a maré vá subindo e a do BE foi, o que significa que correspondeu a uma necessidade de uma parte do eleitorado”, diz Fernando Rosas, um dos fundadores, sentado numa sala do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova. Às tantas, aponta para a janela e relembra que foi ali perto, no restaurante Oh! Lacerda que, com Miguel Portas, Luís Fazenda e Francisco Louçã, partiu “muita pedra” para construir aquilo que viria a ser o Bloco. 20 anos depois, não tem dúvidas: “O BE veio preencher uma lacuna política real.”
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Nunca, como nas eleições legislativas de 2015, essa manifestação foi tão visível. Naquela noite de 4 de Outubro, a agitação que se vivia no cinema São Jorge, em Lisboa, era de festa. Ninguém estava à espera que o BE alcançasse aquele resultado: depois de, em 2011, ter perdido metade dos deputados, passando de 16 para oito, conquistava 19 lugares no hemiciclo. Com aquela expressão nas urnas, estava pronto para juntar forças à esquerda, derrubar a direita e ser parte de uma maioria parlamentar de esquerda. O desafio foi feito, logo ali, pela coordenadora Catarina Martins que, também nessa noite, disse algo que passou despercebido no meio do rebuliço das contagens e dos festejos: "Sabemos que vão ser dias e vão ser anos difíceis, vai falar-se muito de crise política.”
É que na política, como na vida, nem tudo são só flores. Com as rosas vêm sempre alguns espinhos. E aquela madrugada, que daria início a um dos grandes momentos de viragem na história do partido – nunca antes o BE tinha estado tão perto do poder, influenciando decisões, como agora – acabou por ser também o motivo de descontentamento de alguns.
A duas semanas de o BE completar uns redondos 20 anos, um grupo de 26 militantes bateu com a porta, apontando razões numa longa carta – a “institucionalização” do partido foi apenas uma delas. Apontavam também falta de “pensamento crítico” e “hostilização da divergência interna”, entre muitas outras. A missiva terminava com uma alusão ao manifesto fundador do BE, Começar de Novo: “Para nós, o tempo de militância no BE acabou. Começamos de novo quando ainda está tudo por fazer.”
Apesar de Catarina Martins, Fernando Rosas e Luís Fazenda, outro dos fundadores, concordarem que a esquerda tem ainda muito que fazer, não subscrevem as reflexões daqueles dissidentes. “O BE já teve, para aí, umas dez críticas dessas, ao longo de 20 anos, de vários grupos que entenderam isto ou aquilo. Legitimamente é tudo muito respeitável. Vamos ver se nos encontramos por aí nas várias lutas sociais e políticas”, diz Fazenda.
Não foi, de facto, a primeira vez que o BE sofreu na pele o embate de dissidentes de peso. Já antes figuras como Daniel Oliveira, Joana Amaral Dias ou Ana Drago partiam para outras trincheiras. Mas no ADN do Bloco está, de alguma forma, inscrita, desde o início, uma multiplicidade de correntes. Foram rostos de diferentes projectos políticos da esquerda que, há 20 anos, se encontraram para criar algo novo: Francisco Louçã, do PSR; Luís Fazenda, da UDP; Fernando Rosas; e Miguel Portas, que vinha da Política XXI e que morreu em 2012.
Em comum, tinham o combate contra a “agenda negra” do “capitalismo selvagem” e do “neoliberalismo”, recorda Fazenda. Além daquele grupo, o BE teve também uma forte participação de nomes e de movimentos ligados ao feminismo, à igualdade de género, aos direitos das mulheres, dos homossexuais. Causas que, concordam os bloquistas, ainda não se esgotaram. Nem se deverão esvaziar nos próximos 20 anos.
Ambiente "pessimista"
Uma dessas bandeiras estaria, aliás, na génese do BE – a legalização da interrupção voluntária da gravidez. Apesar de 28 de Fevereiro de 1999 ser a data em que aconteceu a Assembleia Fundadora, a ideia de um projecto que congregasse várias forças da esquerda começou a germinar em 1998, recorda Fernando Rosas. Foi no meio do ambiente “pessimista” em que a esquerda se via mergulhada, depois da derrota no referendo sobre o aborto, que se tentava “começar de novo”.
Nem sempre o BE foi levado a sério. Tanto Luís Fazenda, como Fernando Rosas, se lembram dos “epitáfios precipitados” sobre a morte do partido: “Profetizaram sempre que ia desaparecer, ia acabar. Ainda não tínhamos nascido e já nos diziam ‘não duram seis meses’. Enfim, já passaram 20 anos. Duas décadas depois, vemos que o BE é apenas o terceiro partido do país, em termos de representação eleitoral.” O fôlego que aquela madrugada de Outubro de 2015 deu aos bloquistas ainda os mantém na corrida, certos de que não foi o êxito de um sprint, mas o esforço de uma maratona que ainda não acabou.
Fazenda garante que a energia do partido está “reforçada”: “Se há esquerdas cansadas, isso não mora cá, terão de procurar noutro lado”. Catarina Martins subscreve: “Não estamos nada cansados, temos muito pela frente.”
A actual coordenadora, que na altura da fundação do partido estava no teatro, olha para trás e não vê só conquistas. É um efeito espelho: ao que se fez no passado corresponde outro tanto por fazer no futuro, seja no feminismo, no anti-racismo, nas lutas laborais: “Sabemos que há muito mais trabalho precário, mas não me esqueço que, quando comecei a trabalhar como precária, nem a palavra precário sabíamos utilizar. Não se usava sequer a expressão precariedade. Não havia um sujeito político laboral precário que pudesse afirmar e fazer a luta, e fizemo-lo.”
O léxico da política vai mudando, à medida que surgem novos movimentos, novos partidos, novas causas. Também o vocábulo bloquistas foi estreado na imprensa quando os jornalistas enumeravam, por exemplo, as cinco áreas prioritárias para aquele conjunto de pessoas: emprego para todos; justiça social; defesa do ambiente; despenalização das drogas; laicidade do Estado. Muitos artigos se escreveram sobre as prioridades e bandeiras do BE, umas mantiveram-se (e manter-se-ão, garantem os bloquistas), outras concretizaram-se, como a despenalização das drogas, para referir apenas um exemplo.
Na última convenção, a uns meses de completar 20 anos, as cinco áreas enumeradas por Catarina Martins foram a Lei de Bases da Saúde; demografia (incluindo igualdade salarial para mulheres e respeito pelos imigrantes); alterações climáticas; defesa do controlo público da banca e da energia; e criação de uma entidade da transparência. Nem tudo são temas novos: ao longo destas duas décadas, várias reportagens foram escritas, com apoiantes do BE de megafone em punho, a gritarem contra privatizações ou com líderes bloquistas a baterem-se pelos direitos dos imigrantes.
E daqui a 20 anos?
Saber, por isso, onde estará o BE daqui a 20 anos é tão “insondável”, para usar uma expressão de Luís Fazenda, quanto previsível. Sobre o desenho que assumirá o xadrez político, só as eleições o determinarão. Sobre as batalhas que andará o BE a travar, seja de megafone em punho ou nos gabinetes do poder, elas terão sempre na mira as várias “faces” do capitalismo, seja na “exploração no trabalho”, na “luta de classes”, no “patriarcalismo”, ou na “discriminação sexual e racial”, explica Rosas.
O projecto de transformação da sociedade do BE, que era urgente há 20 anos, urgente deverá continuar por outros tantos anos. “Daqui a 20 anos, se não estivermos no poder, a luta que se trava é a luta pelo socialismo”, resume Fernando Rosas. Nos direitos laborais, na violência doméstica, no racismo, e em muitas outras frentes, os bloquistas sabem que andarão de mangas arregaçadas por tempo indeterminado. “Há uma modernização social de índole socializante muito importante para fazer e essa é a agenda política do BE por muitos anos”, diz o historiador.
Ao conjunto de lutas maiores, acrescenta uma outra que o perturba em particular, até pela ligação que tem à academia – a praxe. Não se revê nas representações de “humilhação” encenadas pelos estudantes, a rastejar, a não olhar nos olhos, a obedecer.
Tal como Rosas, também Fazenda encaixa várias lutas futuras num combate maior: acabar com as desigualdades é, e continuará a ser, “o objectivo máximo”, a “maior agenda”, do partido.
A “plena igualdade de género”, o “combate efectivo à pobreza”, o fim da precariedade: “Todos esses aspectos estão na nossa agenda desde sempre, estão agora e estarão daqui a 20 anos. Esperemos que não sejam tão necessárias como hoje nós entendemos.” Na actual agenda dos bloquistas está também a preocupação com a extrema-direita, acrescenta Luís Fazenda.
Mas não é só à agenda que os bloquistas apontam coerência ao longo dos tempos. Também o fazem em relação à ambição política. E, no entanto, ela move-se. Em 1999, o BE lançava-se na corrida das legislativas, afirmando: "Não somos candidatos à governação, mas à renovação da oposição.”
Hoje o BE já se afirma como candidato à governação. Tornou-se mais ambicioso? “Mas há algum partido que não tenha essa ambição?”, espanta-se Fernando Rosas. E clarifica: “O BE tem como ambição influenciar o poder, enquanto não tem o apoio eleitoral suficiente para o conquistar, sozinho ou acompanhado.”