O fascismo pode ser o modo como estamos a exterminar a síndrome de Down
Convidado a encenar actores com deficiência num teatro de Zurique, Milo Rau achou que estava na hora de falar da “criminalidade extrema” que sustenta o modo de vida suíço. Começou o trabalho a pensar em lavagem de dinheiro, acabou a lidar com o aborto selectivo. Os 120 Dias de Sodoma, teatro choque, chega a 7 e 8 ao Teatro Rivoli, Porto.
Em 2017, a Islândia foi notícia por estar prestes a tornar-se no primeiro país do mundo onde já ninguém nasce com síndrome de Down. Nesse ano, Milo Rau não estava a caminho da Islândia mas de volta à Suíça, e justamente para encenar um grupo de actores com síndrome de Down — talvez o último grupo de actores com síndrome de Down, num país onde a taxa de aborto por suspeita desta anomalia também conhecida como trissomia 21 já superará os 90%. E embora agora pareça fazer imenso sentido, ainda não tinha pensado em nada disto quando lhe perguntaram o que é que gostaria de fazer com o Theater Hora, a companhia constituída por actores com deficiência que então o convidou a trabalhar em Zurique, e ele respondeu imediatamente que lhe apetecia revisitar um filme visto aos 19 anos num domingo de sol em Paris, um filme maligno e maldito, o filme que Pier Paolo Pasolini fez pouco antes de ser assassinado, em Novembro de 1975, e que nunca chegou a ver projectado.
Se Saló ou Os 120 Dias de Sodoma transpunha para os dias da sinistra República de Salò o romance também maldito em que o Marquês de Sade descrevera as perversões da aristocracia pré-Revolução Francesa, a peça que Milo Rau agora traz ao Porto transpõe toda essa iconografia de sangue, violação, sodomia e sacrifício, uma iconografia tão sádica quanto crística, para a Suíça do século XXI. Que não é, diz, menos amoral do que a elite do Antigo Regime ou a cúpula da última encarnação do fascismo italiano: “Quando comecei o projecto, queria ser ainda mais explícito acerca da violência da sociedade suíça em relação ao Congo, e por aí fora. O ouro que ali se extrai ilegalmente é refinado à volta de Genebra, onde o seu valor de mercado explode. Isto é de uma criminalidade extrema, mas como não há tropas suíças no Congo não corres o risco de ligar a televisão e ver soldados suíços a rirem-se enquanto matam miúdos congoleses. Sendo que o que se passa é mais ou menos o mesmo.”
Num país obcecado com a culpa, como a Alemanha ou mesmo a Áustria, o enriquecimento de que os suíços beneficiam até hoje seria material traumático. Na Suíça nem sequer é assunto. A moral é “uma coisa estrangeira, uma coisa que os alemães fazem”. E a coisa que os suíços fazem é manter a normalidade. Talvez seja genético, admite: “Tens a riqueza de uma aristocracia misturada com o espírito de um proletariado não erudito. Isso dá uma pequena burguesia pseudo-tolerante mas de facto bastante repressiva. É toda uma população que atingiu um estado de riqueza inédito na história humana e que sabe bem que não há nenhuma razão para isso, porque ainda há cem anos os suíços estavam a fazer sanitas em Itália.”
Como os suíços não se auto-flagelam sozinhos, eis que Milo Rau pôde aparecer mais uma vez como justiceiro, desta vez na sua própria casa. Fazer justiça é dizer verdades difíceis como a de que o privilegiado modo de vida actual só é possível porque “a dado momento, quando todos os países europeus decidiram matar-se uns aos outros, a Suíça se transformou nesta máquina de transformar merda em ouro”. E, no caso de Milo Rau, fazer justiça também é fazer teatro. O que implica um processo, aliás colectivo (aos actores com deficiência do Theater Hora juntar-se-ia entretanto o consagrado elenco do Schauspiel Zürich)— e, durante o processo, Os 120 Dias de Sodoma deixaram de tentar denunciar a culpa genérica do homem suíço para se centrarem num tópico específico: “Quis questionar o imaginário pequeno-burguês da arte, que produz imagens como estas que me disseram ser demasiado explícitas. Na Suíça o excesso é uma coisa que se cultiva em cima do palco, porque fora do palco é ilegal. É como se o palco fosse o lugar para onde se atira tudo o que na vida é proibido, não apenas pela lei mas também pelos costumes.”
O filme deu-lhe um pretexto para martelar nisso — “No salão daqueles quatro chefes há pinturas cubistas, eles citam Artaud, todos esses clichés” —, e depois a cabeça de Milo Rau, posta perante a realidade daquelas pessoas que hoje mais de 90% dos suíços não querem ver nascer, fez o resto. Fez com que antes do final apoteótico em que fazem piruetas e se atiram para o chão a agradecer as palmas da sala cheia do Teatre Lliure, em Barcelona, onde a digressão deste blockbuster europeu parou antes de vir para o Porto, tenhamos de os ver a dizerem que estão apaixonados e querem casar e ter filhos, enquanto uma voz-off decreta que estes são os últimos da sua espécie, que depois deles não haverá mais, e se ouve o início do poema em que Pasolini declara “Eu sou uma força do passado”. Fez com que os tenhamos de ver molestados, violados e crucificados sabendo que a metáfora quer falar connosco, como também quis falar com o encenador: “Acusaram-me de ser moralista e talvez mesmo de direita por me opor ao aborto de pessoas com deficiência. O que critico é outra coisa: é que estas pessoas a quem dão o prémio de melhor companhia de teatro da Suíça são as mesmas que não queremos que vivam connosco. No palco são uns óptimos clowns, nos bastidores matamo-los. Ou seja: a pequena burguesia é pró-vida quando se trata da arte, mas na vida real acabou-se o vitalismo, toda a gente tem de ser perfeitamente funcional. Há nisso um pseudo-anarquismo muito fascista.”
Por ter lidado com os seus actores como um encenador, Milo Rau também ouviu outras coisas. “Criticaram-me muito o facto de não lhes ter dado liberdade total, que obviamente não é o que deve ser feito quando se adapta o Marquês de Sade. Mas é uma lei pequeno-burguesa: no teatro as crianças e os deficientes devem poder estar nus e dançar o tempo todo, nada de ordens do encenador. É uma lei tanto mais dura quanto fora do palco não gozam de liberdade nenhuma.” A não ser para “mostrar muito bem os sentimentos e chorar”, coisas que Julia, a actriz que encarna Jesus, faz especialmente bem — e que “os verdadeiros suíços”, garante Milo Rau, jamais farão.
O Ípsilon viajou a convite do Teatro Municipal do Porto