Cuidadores Informais: quando não se pode dar tempo ao tempo
Existem cerca de 827 mil cuidadores informais em Portugal. Indivíduos que prestam os cuidados necessários a quem não pode sobreviver sozinho. Pessoas que dão tudo em troco de nada e cujo trabalho está avaliado em 333 milhões de euros mensais. A criação do estatuto do cuidador informal é imperativa.
Lembro-me de a ver no fim do escorrega à minha espera. De misturar o iogurte natural com morangos cortados aos bocadinhos para o meu lanche. E quando fazia bolo de bolacha e me deixava embeber as bolachas em café? Normalmente, já não chegavam para a receita em si, mas ela não se importava, porque eu sentava-me numa cadeira e sorria, constatando a mestria com que barrava cada camada de bolachas com aquele creme que fazia de uma forma tão única. Ia comigo ao cinema e, mesmo que os filmes fossem abomináveis, ria-se e dizia piadas. Comprava-me livros. Aliás, o primeiro livro que li, um do Winnie The Pooh, foi-me oferecido por ela.
Perdia tardes a obrigar-me a melhorar a minha caligrafia. Queria que eu fizesse todos os trabalhos de casa. Ia comigo às aulas de natação e via o orgulho estampado no seu rosto quando eu dava cambalhotas sucessivamente ou saltava das pranchas mais altas. Ensinava-me tudo, desde a localização da artéria aorta até à conjugação dos verbos irregulares em francês.
Relembro com uma enorme saudade as tardes de sábado em que me sentava junto dela e folheávamos os seus exemplares das enciclopédias da Lello & Irmão e, com um entusiasmo surpreendente, me falava da Guerra dos Cem Anos ou da História de cada colónia portuguesa. E quando já espirrávamos devido ao pó ou estávamos cansadas de ler tanto, ouvíamos um dos seus maravilhosos CD de fado: normalmente, um da discografia do fadista Rodrigo, o Fado em Mim da Mariza ou o Para Além da Saudade da Ana Moura.
“Maldita sejas tu, alzheimer. Chegaste sem aviso prévio. Decidiste instalar-te como um parasita e dominar a vida dela. Diz-me, porquê?” – foram estas as primeiras frases que consegui redigir acerca da doença que assolou a existência da minha avó, Maria Adelaide, bem como a minha.
À época, encontrava-me no segundo semestre da licenciatura em Jornalismo e acreditava que a situação poderia inverter-se. Até porque a minha avó ainda tinha bastantes momentos de lucidez e conseguia reconhecer-me, coisas que considerava excecionais tendo em conta todos os artigos científicos que começara a ler sobre este tipo de demência.
Se os seus comportamentos já não me pareciam normais, encontrá-la à porta de um café de madrugada constituiu a gota de água. Comecei a dar-lhe banho e ela não conseguia segurar na esponja ou colocar o champô no cabelo. Um dia, deixou cair os talheres enquanto comia. Os meus familiares acreditavam que padecia apenas de uma típica senilidade, que aos 71 anos era compreensível que nem tudo fosse executado com a maior das agilidades, mas eu via mais do que o declínio das suas funções psicológicas e motoras devido ao avançar da idade.
Marquei a famosa “Avaliação Neuropsicológica”, que segundo os experts “consiste na utilização de um exame clínico, aliado a outras ferramentas diagnósticas (tomografia computorizada, ressonância magnética, etc), à observação do comportamento, a relatos de familiares do paciente e a outros testes” mas que, para uma leiga como eu, foi basicamente um teste à memória e à coordenação motora da minha avó. Devo ter lido aquele relatório umas dez vezes sem exagero, até ter telefonado à minha mãe que apenas me respondeu: “Tinhas razão, afinal tinhas mesmo razão”.
Preferia estar errada. Em fevereiro de 2017, já havia escrito “Tenho de lhe dar banho, vesti-la, deitá-la, alimentá-la... Não faz nada sozinha, sinto que tenho 19 anos e uma filha. Não me interpretem mal: tenho todo o gosto em auxiliá-la, contudo, sinto que não me encontro à altura deste desafio.” Mas será que alguém está a altura de tomar conta de uma pessoa que se degrada lentamente e que perde a identidade? Será que conseguimos ter sangue “frio” suficiente para observar o olhar perdido e baço de alguém, as mãos trémulas, a voz que se torna num fio e pensar: “Ok, eu tenho de cuidar desta pessoa e esquecer estes pormenores?”. Porque a cada dia, os pormenores agigantam-se e tão depressa apanhamos fraldas do chão como impedimos que essa pessoa caia de umas escadas às cinco da manhã.
A revolta para com o destino é gigante, mas penso nas coisas que nos uniram ao longo dos anos e naquilo que me foi ensinado por ela. Aquilo que me incomoda é a passividade governamental.
Não quero ser exaustiva, mas creio que é necessário fazer um pequeno périplo pela legislação mais recente onde os cuidadores informais são visados. A 9 de março de 2018, foi criado o projecto de resolução n.º 1408/XIII/3ª, proposto pelo PAN, que recomendou ao Governo a adoção de medidas de apoio aos cuidadores informais. No mesmo dia, o CDS-PP avançou com o projeto de resolução n.º 1400/XIII/ que recomenda ao Governo que considere as demências e a doença de Alzheimer uma “prioridade social e de saúde pública; que elabore um Plano Nacional de Intervenção para as Demências; que adopte as medidas necessárias para um apoio adequado a estes doentes e suas famílias; e que crie e implemente o Estatuto do Cuidador Informal”.
O PCP lançou o projeto de lei n.º 804/XIII/3.ª, onde a rede de apoio aos cuidadores informais, a formação, acompanhamento e capacitação dos mesmos, os apoios psicossocial e domiciliário e o reforço da proteção laboral e social foram ratificados. No projeto de lei n.º 801/XIII/3ª, o BE tentou criar o estatuto do cuidador informal e reforçar as medidas de apoio a pessoas dependentes. No Artigo 7.º da Lei n.º 31/2018, foram abordados os cuidados paliativos em ambiente domiciliário – aqui, o foco foi a pessoa em contexto de doença avançada e em fim de vida.
Volvido quase um ano, aquilo com que podemos contar é o artigo da proposta de lei do Orçamento do Estado para 2019 (OE2019) sobre cuidadores informais que estabelece que o Governo, no próximo ano, "diligencie medidas de apoio dirigidas" aos cuidadores informais. Foi aprovado com a abstenção do PSD e do CDS-PP e os votos a favor das restantes bancadas.
Em linhas gerais, esta proposta de lei prevê a formação e descanso do cuidador, assim como a criação de um subsídio. Mas caso venha a ser aprovada, é estimado que demorará pelo menos um ano a abranger todo o país. Na proposta de lei 156/XIII, mais especificamente no artigo 94º, podemos compreender a perspetiva através da qual o Governo (envolvendo todos os Ministérios) observa os cuidadores informais: “(…) o desenvolvimento de medidas de apoio (…) de forma a reforçar a sua proteção social, a criar as condições para acompanhar, capacitar e formar o cuidador informal principal e a prevenir situações de risco de pobreza e de exclusão social” e “(…) avaliação das respostas existentes dirigidas ao descanso do cuidador, designadamente no âmbito da RNCCI (A Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados), dos serviços e respostas sociais existentes de não institucionalização ou dos benefícios fiscais em vigor, por forma a avaliar a necessidade de reforço ou reformulação dos mesmos”.
Apesar de ter sido a primeira vez em que os cuidadores informais foram contemplados num Orçamento do Estado, esse feito não é suficiente. Não há medidas concretas nem uma verba definida para a implementação das mesmas. Para além do documento onde é definido o futuro do país, há que refletir amplamente. Enquanto um cuidador formal exerce os cuidados no âmbito da sua profissão, o informal assiste com base no relacionamento existente, no amor e no companheirismo. Ou seja, apesar do tratamento poder ser menos perfeito, será sempre mais verdadeiro, respeitoso e confortável. Consequentemente, ao realizar as tarefas do quotidiano, o cuidador informal defende o cuidado com mais fervor, identificando os fatores positivos e negativos que o podem influenciar. Combate o isolamento social, os maus tratos e ainda promove o diagnóstico precoce das patologias.
Não, não me quero vitimizar. Quero dar voz aos outros 826 mil cuidadores informais. Quase ninguém sabe que a Maria, de 21 anos, trata da avó enquanto tenta ser jornalista. Tal como quase ninguém sabe que, aos 10 anos, o Filipe vinha da escola e dava o jantar e a medicação à mãe. Tal como quase ninguém sabe que a Ana abandonou um emprego estável para cuidar do filho, com 8 anos, que sofre de paralisia cerebral. Tal como quase ninguém sabe que a Carla colocou a sua vida profissional em pausa para auxiliar a avó e a tia.
Lembro-me de a ver no fim do escorrega à minha espera. De misturar o iogurte natural com morangos cortados aos bocadinhos para o meu lanche. Hoje, levo-a a passear até ao jardim e misturo o iogurte natural com morangos cortados aos bocadinhos para o seu lanche. Não se pode dar tempo ao tempo.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico