A intensidade punk de Vicente Wallenstein vai a jogo
O actor é o criado João na relação de poder imaginada por Strindberg. Até 24 de Março, no D. Maria II, com Um Outro Fim para a Menina Júlia Tiago Rodrigues oferece um futuro feliz às personagens originais.
No final de Menina Júlia, Strindberg ofereceu à sua protagonista uma porta para a tragédia. Incapaz de lidar com as consequências da sua noite de paixão ardente com o criado João, só encontra no suicídio a solução para o julgamento castigador de que seria alvo daí em diante. Pois agora, Tiago Rodrigues quis ceder à “vontade de salvar a Júlia como poderia ter a vontade de salvar a Antígona”, conta ao Ípsilon, “imaginando-a mais velha, feliz, acomodada”. E oferece-lhe, pelo menos, mais 30 anos de vida, concretizando o plano de fuga que Júlia e João, patroa e criado, chegam a delinear na fatídica noite de São João em que tudo acontecia originalmente: os dois viraram costas àquela vida, puseram-se a caminho do Lago de Como e investiram as economias dela na compra de um pequeno hotel.
Ao entrarmos em Um Outro Fim para a Menina Júlia, em cena no Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa, de 1 a 24 de Março, encontramos um casal longe daquela noite, entregue a uma vida de felicidade pouco atribulada. Tiago Rodrigues quis prolongar a vida de Júlia, admite, “mesmo que isso signifique deixar de ser aquela personagem apaixonante”. À tragédia contrapõe a vida. Às emoções arrebatadas, o conforto das escolhas tidas como certas. E não se faz isso sem um preço: “a Júlia já não é essa figura fascinante que era na juventude, o João já não é aquele turbilhão musculado e temperamental” de antes.
É por este final alternativo e futuro que a peça arranca, colocando-nos diante de Júlia (Paula Mora) e João (Manuel Coelho), provando-nos que hoje o peso moral do tempo de Strindberg não tem de equivaler a uma faca espetada contra o próprio corpo. Em vez disso, dir-se-ia que personificam o arranque de Anna Karénina – “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira” – enquanto dobram guardanapos e cortam presunto, dando as boas-vindas aos seus convidados. Mas a conversa sobre a sua vida há-de encaminhar-se, inevitavelmente, para o passado e ceder à ideia de cruzar diferentes gerações em palco – os actores mais velhos (a Mora e Coelho junta-se Lúcia Maria) com o texto de agora na boca, os mais novos (Helena Caldeira, Inês Dias e Vicente Wallenstein) a tomarem conta do segundo acto, munidos das palavras que Strindberg escreveu há 130 anos, numa versão reduzida que funciona como um flashback, um zoom sobre o episódio que determinou o curso do seu futuro a dois.
Esse turbilhão de João na peça de Strindberg invade a cena de imediato com a entrada em palco de Vicente Wallenstein. De homem seduzido e tentando manter as regras da distância social no início, João não demora a entrar completamente no jogo e a tomar as rédeas daquela relação proibida entre a menina burguesa e o seu criado. É ele quem congemina a fuga, quem se imagina a escapar à condição em que nasceu, a conquistar uma posição que lhe permita encurtar o tanto que os separa. Menina Júlia, enquanto clássico da dramaturgia mundial, não é uma novidade na vida de Vicente Wallenstein, 23 anos, porque é daqueles textos que sempre acabam por surgir durante o período de estudos na Escola Superior de Teatro e Cinema.
Até agora, no entanto, Strindberg não fazia parte do seu círculo de intimidade. Mas não há por onde recusar esta relação de poder que se estabelece entre as duas personagens e que muda de campo de força, aqui expurgada do “lado católico, moral e religioso que o Tiago quis retirar”, diz Vicente. “Acho que para este espectáculo interessa mais a forma como os jovens acabam, ao longo do tempo, por se tornar pessoas muito diferentes, mudadas pelo tempo.” Ou, como resume o autor que quis “usar o Strindberg para falar daquilo que já não é actual no Strindberg”, aqui confrontamo-nos com “a história de dois punks que agora têm uma mercearia [um hotel, em rigor, mas isso pouco importa]”.
Rápido e intenso
Foi há dez anos que Vicente Wallenstein, filho da programadora da Fábrica das Artes do CCB, Madalena Wallenstein, se apresentou num casting para a curta-metragem Um Dia Frio, realizada por Cláudia Varejão. Essa primeira experiência empurrou-o em definitivo para um percurso que rapidamente começou a desenhar-se com um clube do Teatro da Garagem em que foi pisando o palco de forma regular e que não lhe deixou grandes dúvidas quanto à formação que prosseguiu na Escola Superior. Os passos foram rápidos e seguros, como sempre acontece quando se detecta um talento efervescente, só à espera de meia oportunidade para deixar a sua marca. Essa qualidade urgente e impetuosa de Vicente em palco foi explorada de imediato quando Álvaro Correia, seu professor, o chamou ainda durante o curso para duas peças no Teatro da Comuna – Depois do Silêncio, de Arne Lygre, e PLAY LOUD, de Falk Richter.
Ainda assim, foi já depois de se estrear com a companhia que fundou com João Cachola (As Crianças Loucas) e de iniciar a sua colaboração com Os Possessos (participou em Marcha Invencível e O Novo Mundo) que Vicente Wallenstein teve o primeiro grande momento de afirmação nos palcos. Em 2018, coube-lhe protagonizar Mártir, texto de Marius von Mayenburg que Rodrigo Francisco dirigiu no Teatro Municipal Joaquim Benite, fulgurante retrato de “um miúdo que decide pegar na Bíblia e tornar-se um radical cristão”, lembra. “A forma como o Mayenburg escreve isso na Alemanha, numa altura em que as capitais europeias estão a ser tomadas por ataques terroristas, estabelece uma relação muito próxima com o presente, com aquela que é a nossa actualidade”, descreve.
Até agora – mais por acidente do que por escolha pessoal –, Vicente Wallenstein tem-se dedicado sobretudo a textos contemporâneos ou novas criações. E admite começar a experimentar com a sua própria escrita. Mas o tempo é ainda de se atirar sofregamente aos convites que lhe chegam, é ainda de perceber que tipo de teatro quer fazer. Por enquanto, a sua atracção clara é por quaisquer textos ou projectos que o inquietem – como o primeiro filme dos Capitão Fausto, acabado de rodar, em que ele é o líder de uma seita religiosa – e a oportunidade de trabalhar com pessoas como Tiago Rodrigues, com quem está a descobrir um processo “rápido e intenso”. “Até estrearmos é uma descoberta constante, entre os actores e ele, como as palavras do Tiago e do Strindberg se encaixam”. E de como, de acordo com aquilo que se diz na peça, “a felicidade faz sempre as suas vítimas”.