Não fiquei nada surpreendida com a notícia de que o juiz Neto de Moura proferiu, mais uma vez, um acórdão que beneficia o agressor de uma mulher. Era algo que já esperava, por dois motivos: o primeiro é que a punição aplicada ao juiz Neto de Moura por este ter desvalorizado uma agressão grave, praticada por um homem contra uma mulher, foi demasiado leve; o segundo é que estamos perante um caso de misoginia, que nunca, desde o primeiro momento, foi reconhecido e tratado como tal.
Relativamente ao primeiro motivo, a pena disciplinar que o Conselho Superior da Magistratura decidiu aplicar ao juiz em causa foi uma advertência registada. Se falarmos com qualquer pai/mãe de crianças, dir-nos-á que esta punição equivale a uma repreensão, um procedimento que pune um comportamento inadequado, empregando um tom de voz enérgico e firme que se aplica mais do que se deveria a qualquer criança a partir dos dois anos.
Frequentemente utiliza-se esta técnica em situações que representam, de algum modo, algum perigo para as crianças como, por exemplo, quando estas tentam colocar a mão num aquecedor. A maioria das crianças desafia a repreensão, que assimila como efémera: “O pai e a mãe agora estão zangados, mas vai passar-lhes porque me acham muita graça e entretanto não haverá consequências.” E não, não estou a comparar o juiz Neto de Moura a uma criança de dois anos. O Conselho Superior de Magistratura é que o tratou como o seu bebé que, com o seu comportamento inadequado, estava a colocar-se em perigo. Havia portanto, que protegê-lo. Portou-se mal. De novo. E agora?
Quanto ao segundo motivo, há que referir, claramente, que estamos perante um caso de misoginia. Este termo é utilizado na nossa sociedade com alguma inibição, porque se lhe atribui o significado redutor de “ódio, desprezo ou preconceito contra as mulheres, de uma forma geral, só porque são mulheres”. Segundo a filósofa Kate Manne (Down Girl: The Logic of Misogyny, Oxford, 2018), esta é apenas a “concepção naïf”, que insiste em tratar o conceito a um nível individual, como uma característica particular de alguns homens. Isto faz com que seja politicamente marginalizado porque é descredibilizado a priori, pelo facto de haver poucos homens que odeiem todas as mulheres — até porque a grande maioria tem mães, irmãs, filhas e esposa.
Tem que se olhar para a misoginia como “um fenómeno social e político com manifestações psicológicas, estruturais e institucionais”, como o braço armado do patriarcado, um sistema que pune as mulheres que não cumprem as normas sociais estabelecidas e recompensa as que o fazem.
Não retirando nunca a humanidade às mulheres, bem pelo contrário, Manne afirma que, nas normas de género que a misoginia supervisiona e impõe, as mulheres são sempre devedoras dos homens, e, por isso, têm que lhes dar amor, sexo, conforto, simpatia, atenção, trabalho doméstico não remunerado, admiração, etc. Por outro lado, as mulheres não podem exigir nada disto e muito menos usufruir de privilégios considerados tipicamente masculinos, como ser presidente de um país ou, como é evidente, cometer adultério. Servindo a misoginia de policiamento do patriarcado, como já se referiu, tem como objectivo punir as “mulheres más”, sendo estas as que não dão aos homens o que estes esperam delas e as que aspiram ou usufruem de privilégios que são só deles.
Atente-se neste excerto de um acórdão do juiz Neto de Moura, de 2016: “Uma mulher que comete adultério é uma pessoa falsa, hipócrita, desonesta, desleal, fútil, imoral. Enfim, carece de probidade moral.”
Uma vez identificado, um misógino não pode, de maneira nenhuma, continuar a julgar casos de crimes, ou supostos crimes, cometidos contra mulheres.