Isaiah Nengo: “Um fóssil por si só não combate o racismo, mas todos os fósseis que encontrámos podem ajudar”
O paleontólogo queniano Isaiah Nengo estuda fósseis de primatas e está também a investigar como é que as alterações climáticas há milhões de anos afectaram os animais em África.
O interesse de Isaiah Nengo pela paleontologia surgiu ainda quando estava liceu no Quénia e ouviu uma apresentação do paleoantropólogo Richard Leakey. Mais tarde, acabou por ir estudar para os Estados Unidos e agora é director adjunto do Instituto da Bacia do Turkana da Universidade de Stony Brook, em Nova Iorque.
Em 2017, o seu trabalho ganhou maior destaque quando anunciou a descoberta de um crânio muito completo de um símio com 13 milhões de anos no Quénia, o que deu pistas sobre a aparência de antepassados comuns entre os humanos e os símios. Além disso, o paleontólogo refere que este fóssil é mais uma confirmação da origem e evolução africana dos símios e dos humanos. Mas, na altura, alguns cientistas que não fizeram parte do trabalho pediram cautela com as interpretações que se estavam a fazer do fóssil de um símio só com 16 meses de idade.
Agora, além de continuar a analisar ao pormenor esse pequeno fóssil, Isaiah Nengo está a estudar as alterações climáticas há milhões de anos. Aliás, foi este o tema da sua apresentação no Simpósio dos Exploradores da National Geographic, em Londres, onde falou com o PÚBLICO. O paleontólogo também participa num projecto com Richard Leakey para um futuro museu no Quénia (perto do lago Turkana) – o Ngaren – sobre história da evolução.
Em Agosto de 2017, anunciou na revista Nature a descoberta do crânio de um símio com 13 milhões de anos em Napudet, nas margens do lago Turkana (no Quénia) e que pertencia a uma nova espécie, a Nyanzapithecus alesi (conhecida como Alesi). Este fóssil mudou alguma coisa na paleontologia em África?
Se em tempos houve debate, actualmente é consensual que o antepassado comum dos símios e dos humanos provavelmente evoluiu em África. Agora a questão é: que características dos fósseis que encontrámos permaneceram nos primatas? O Alesi deu-nos uma noção como seria a aparência do Nyanzapithecus [género a que pertence esse símio]. Antes, não se sabia muito sobre esse grupo. Penso que o Nyanzapithecus partilhava certas características com o antepassado dos humanos. O que nos ajuda a responder à questão: como seria a aparência do antepassado comum dos humanos e dos símios? E, relativamente à sua cara, esta assemelha-se mais à dos chimpanzés, gorilas e orangotangos ou era mais como a dos gibões?
Os chimpanzés, os gorilas e os orangotangos têm caras compridas, mas os humanos e os gibões têm caras pequenas. Por isso, há um debate sobre se o antepassado comum tinha uma cara comprida – o que significa que o chimpanzé, o gorila e o orangotango mantêm as características desse antepassado – ou se tinha cara pequena e foram os humanos e os gibões que mantiveram essas características primitivas. O que o Alesi nos diz é que o antepassado comum de todos os primatas tinha uma cara pequena.
Com o Alesi veio ainda muita informação sobre o desenvolvimento dos dentes [as raízes estão muito bem preservadas] e poderemos vir a saber muito sobre a sua biologia. Poderemos ainda ser capazes de reconstituir os canais auditivos e, desta forma, o equilíbrio e a sua sensibilidade acústica.
Tendo então a linhagem dos símios e dos humanos surgido e evoluído em África, considera que este tipo de descobertas pode fazer frente ao racismo?
Absolutamente. Acho que, muitas vezes, os cientistas não querem assumir isso e dizem que só lidam com factos e não com política. Mas a verdade é que no passado a ciência foi usada para justificar o racismo. Contudo, o que temos encontrado pode mostrar o contrário daquilo que tem sido usado para fundamentar o racismo. Isto é, um fóssil por si só não combate propriamente o racismo, mas todos os fósseis que encontrámos podem ajudar a fazê-lo.
Se pesquisar no Google a palavra “evolução”, vai logo aparecer uma imagem em escada desde os símios até aos humanos. Mas já encontrámos tantas espécies que, quando as organizamos, a árvore dos símios e dos humanos parece mais um arbusto e percebemos que não se pode usar a evolução para justificar a superioridade [de uma espécie]. Portanto, o que provoca a mudança política não é a evolução apresentada na caminhada linear, um modelo em que todo o conceito de racismo se baseia e que criou o pressuposto de que a vida mudou de uma certa forma porque uns eram melhores do que os outros. No global, acho que com a paleontologia damos uma ajuda para enfraquecer os alicerces em que o racismo se baseia.
Também estuda as alterações climáticas há milhões de anos em África, tendo falado no Simpósio dos Exploradores da National Geographic sobre Alterações Climáticas – Uma História Original. Por que é que as alterações climáticas são uma história original?
Quando falamos das alterações climáticas, pensamos sempre que é algo mau. Se fôssemos a África há 20 milhões de anos, não havia rinocerontes, chitas ou leões. Todos esses mamíferos que existem agora em África não estavam lá. Na altura, a maior parte desse continente era floresta. Mas há cinco milhões de anos, essa floresta desapareceu. Houve, portanto, uma grande mudança impulsionada pelas alterações climáticas e foram essas alterações que fizeram com que os humanos surgissem. Sem o desaparecimento da floresta e o aparecimento de pradarias, não teríamos condições para aparecer.
Mas as alterações climáticas também podem ser más para nós...
As alterações climáticas fazem parte da natureza. Para algumas pessoas que dizem que não acreditam nas alterações climáticas, eu digo: “Olhe, as alterações climáticas trouxeram-nos até aqui e agora estão a acabar connosco.” E se não tivesse havido alterações climáticas em África, haveria florestas e, se houvesse florestas, não havia humanos.
Mas é possível aprender mais sobre as actuais alterações climáticas causadas pelo humano através das alterações do clima ocorridas há milhões de anos?
Actualmente, é consensual que as alterações climáticas são um facto. Mas como é que acontecem e como é que afectam a vida? Para responder a essa pergunta, é preciso recuar no tempo e observar como a vida respondeu no passado às alterações climáticas.
Sobre as alterações climáticas que enfrentamos, o que é mais preocupante para si?
O mais preocupante é não sabermos se o que temos estudado é suficiente. Não temos dados suficientes sobre como a vida reagiu às alterações climáticas [no passado]. Sabemos que reage e que a vida muda. Mas por que é que muda? Não temos essa noção. Actualmente, tenho uma grande equipa – mais de 28 cientistas – à procura dessas respostas. A minha preocupação é que, até termos essas explicações, não tomemos as medidas certas.
Começou por estudar no Quénia, mas foi fazer o doutoramento na Universidade de Harvard, nos EUA. A falta de investimento na ciência em África foi um problema para si?
Não há uma universidade no Quénia onde eu pudesse ter feito a licenciatura, mestrado e doutoramento em Paleontologia. Tive de ir para os Estados Unidos. Não conseguia formar-me no Quénia.
Mas agora no meu instituto – o Instituto da Bacia do Turkana, que pertence à Universidade de Stony Brook, de Nova Iorque – temos um escola de campo onde trazemos estudantes [e professores] norte-americanos e europeus a passar um semestre [no Quénia]. Este programa será usado para criar um programa de mestrado para estudantes africanos. Portanto, o Instituto da Bacia do Turkana está a tentar acabar com essa lacuna. Penso que é uma solução criativa. Em vez de levarmos estudantes para a América, levamos os professores para África. Damos assim uma educação ao nível da dos Estados Unidos em África.
Além disso, se formarmos esses estudantes e lhes dermos mestrados e doutoramentos, eles podem voltar [ao Quénia] e fazer parte da equipa das universidades. Não podemos desenvolver programas de estudos sem termos professores. Por isso, vamos formar professores de forma rápida. Este é o começo para um dia formarmos quenianos como paleontólogos.
E sobre o local onde encontraram o Alesi: foi descoberto nos anos 90, revisitado pontualmente, mas só foi estudado mais intensamente em 2013. Por que deixaram de lá ir? Também foi por falta de financiamento?
Não, isso aconteceu porque é muito difícil encontrar fósseis em Napudet. Há semanas e semanas em que não se encontra um único fóssil. Quando encontrámos o Alesi, tínhamos andado durante cinco dias e não tínhamos encontrado fósseis. Por isso é que ninguém queria lá ir.
Além do Alesi, o que já descobriram lá?
Também encontrámos um hipopótamo, elefantes e rinocerontes. Em 2015 ganhei uma bolsa da National Geographic para voltar lá e encontrámos partes de esqueletos de diferentes espécies e estamos agora a descrevê-las.
Está a desenvolver algum trabalho em Napudet com a sua equipa?
Vamos lá todos os anos e estamos a juntar mais fósseis. Também estamos a fazer uma reconstituição do seu ambiente. Há até um botânico a reconstituir a vegetação, porque uma das coisas mais marcantes foi a paisagem ter ficado coberta com erupções vulcânicas [pensa-se que o Alesi tenha morrido numa erupção vulcânica]. Mas, mesmo assim, houve árvores que permaneceram.
Quais são, neste momento, as principais questões da paleontologia em África?
A principal questão é: o que causou as alterações climáticas entre há 15 e cinco milhões de anos? A principal hipótese é que foi o levantamento tectónico, mas precisamos de testar essa hipótese.
No que está a trabalhar neste momento?
Estou a fazer duas coisas. Tenho uma equipa de 16 cientistas a estudar o Alesi ao pormenor. Em Abril, vamos estar no sincrotrão em Grenoble [o Laboratório Europeu de Radiações Sincrotrão, uma poderosa máquina de raios X em França, onde já se tinha analisado o fóssil para o estudo publicado na Nature] e vou levar mais fósseis para fazermos comparações. Há também um grupo do [Instituto] Max Planck a analisá-lo e a fazer uma reconstituição sobre como seria o Alesi. Tudo isto vai demorar três anos. O artigo na Nature foi só o anúncio, agora vamos fazer ciência a sério.
O outro projecto é constituído por mais de 28 cientistas da Europa, África e Ásia: vamos estudar o problema das alterações climáticas e como afectaram os animais. Ganhei agora uma bolsa de três milhões de dólares [2,6 milhões de euros] da Fundação Nacional para a Ciência [dos EUA] para quatro anos. Vamos poder ter um modelo sobre como seria Napudet há 20, 17 e cinco milhões de anos e como seria a sua vegetação e temperatura.
O PÚBLICO viajou a convite da National Geographic