Os caretos na idade do espectáculo
Lazarim e Podence disputam o título de Entrudo mais tradicional do país, com o último já Património da Humanidade. Vamos aos dois e viajamos pelas suas histórias e tradições: pela folia, pela pouca vergonha, mas sobretudo pelo mergulho na catarse colectiva.
Há 50 anos, os caretos do Nordeste de Portugal eram uma paródia triste, ou em vias de extinção. Agora são convidados a desfilar noutros carnavais, animam parques de diversões e participam em festivais de máscaras, tanto dentro como fora de portas. As máscaras, os gorros e os chocalhos com que secularmente se ataviam, mais os ímanes, os porta-chaves e todos os souvenirs que os recriam, já podem ser encomendados pela Internet. Se juntarmos a cobertura mediática e online, para além da literatura académica, somos levados a concluir que já vimos e sabemos tudo dos carnavais do Nordeste de Portugal, sem sequer lá pôr os pés. Essa sensação de déjà vu será porventura ainda maior em relação a Lazarim e a Podence, eternos concorrentes ao título de Entrudo mais tradicional do país.
É verdade que as máscaras não variam por aí além de ano para ano, as pantomimas também andam quase sempre à volta do mesmo - é por isso, aliás, que são tradicionais. Mas estes carnavais são o tipo de manifestação em que o lugar, a ambiência e a participação fazem toda a diferença. Os caretos de Lazarim e de Podence podem (e merecem) ser exportados para todo o lado. Em nenhum, porém, são tão intensos e genuínos como nos sítios que os celebram desde sempre. Tem muito a ver com os ciclos da terra e da fertilidade, mas não menos com as vivências comunitárias e sobretudo com a forma como a sexualidade é nelas perspectivada e assumida. Não há então como lá ir e mergulhar no “pandemónio”.
Chocalho erótico
Na aldeia de Podence, nas imediações de Macedo de Cavaleiros, os caretos (ou mascarados) vestem uma espécie de uniforme de folia. Consiste em fatos de lã felpudos, cobertos de franjas de cores garridas, que mais usualmente combinam o amarelo, o vermelho e o verde. São rematados por capuzes dos quais pendem longas caudas, sempre em lã e de cores berrantes. As máscaras são grosseiras: folhas angulares rematadas por um nariz pontiagudo, frequentemente em zinco, mas por vezes também couro, em geral vermelhas ou pretas com uma cruz pintada na testa. Há quem veja neste preparo uma farpela demoníaca, mas nos tempos que correm parece mais o guarda-roupa de um romance de ficção medieval. De qualquer modo, o traje das franjas é sobretudo um emblema de irreverência e o que interessa nos caretos de Podence são menos os trapos que os adereços. A saber, as duas bandoleiras com campainhas que se cruzam sobre o peito do mascarado, rematadas por um cinto carregado de pesados chocalhos (oito a doze).
O que realmente interessa são os chocalhos, porque é neles que se concentra a acção. No Carnaval de Podence não há devaneios cénicos, não há coreografias, nem sequer poses pitorescas. A rotina durante os dias da festa consiste nos grupos de caretos percorrerem a ladeira que liga o adro da igreja ao terreiro que dá entrada na freguesia, horas a fio para cima e para baixo, incessantemente à pergunta de fêmeas. Correm e gritam quando vislumbram “presas” desprevenidas, mas também há muitos encontros em que se verifica mútuo consentimento. Sejam quais forem as circunstâncias, eles acabam sempre por tomar posição ao lado delas, abraçando-as e chocalhando-as de preferência com força. E depois? Bom, depois passam à candidata seguinte…
O Entrudo Chocalheiro é, em resumo, uma época de cortejo sexual, casual e brincalhão. Os caretos são sem excepção do sexo masculino. Antigamente era um clube reservado a rapazes solteiros, mas entretanto o espectro etário alargou-se e agora vai de homens maduros a miúdos da escola primária. Por isso, e porque há muita gente emigrada que gosta de regressar à aldeia para vestir a fantasia na quadra carnavalesca, chega a haver mais de meia centena de caretos à solta em Podence. A compensação é que há também mais mulheres dispostas a serem chocalhadas, logo porque a abordagem já não visa só raparigas solteiras, podendo recair sobre qualquer fêmea, à excepção de grávidas e de viúvas. Muitas das chocalhadas nos dias que correm são avós gaiteiras e as respectivas netinhas.
O Entrudo Chocalheiro tem, porém, mais que se lhe diga. Não é assédio, mas é certamente um aproximação física, sugestiva e com uma forte carga erótica, que instantaneamente envolve dois perfeitos estranhos. Sendo que o careto, ou seja, a metade masculina do casal improvisado, pode e mais frequentemente permanece anónimo. É sempre uma experiência forte, que mexe com quem entra no jogo, mesmo se hoje em dia é mais pela piada, pelo estremecimento ou pelo shot de adrenalina. O Carnaval em Podence funciona, de resto, como um sinal dos tempos, um palco onde os papéis tendem a inverter-se, no sentido de serem elas quem cada vez mais procura o chocalho, incluindo bandos de raparigas que se lançam sem contemplações sobre os caretos mais jeitosos.
Portugal, outros Carnavais
Guerra dos sexos
Se as máscaras em Podence são feitas para manter o anonimato e pouco mais, já em Lazarim ganham uma exuberância plástica que as eleva ao patamar do melhor artesanato de Portugal. Na pequena vila serrana, nas imediações de Lamego, manda a tradição esculpir troncos de amieiro com um sortido de figuras fantásticas e enigmáticas, seguramente ancoradas na cultura e no imaginário locais. Vai de figuras históricas e pitorescas a figuras mágicas de inspiração demoníaca, passando por focinhos de animais antropomorfizados, frequentemente rematados por chifres e cornos pontiagudos.
Antes havia máscaras coloridas - um diabo vermelho serviu de ícone às festas de Lazarim ao longo dos anos 80 do século passado -, e caricaturas de celebridades. Mas a vontade de manter o artesanato próximo das raízes baniu a cor da madeira e restringiu a figuração dos artífices (actualmente uma dúzia) ao imaginário de inspiração local e tradicional. Este conservadorismo conjuga-se, porém, com uma pequena-grande ruptura com o passado: se antes só os homens se mascaravam, apropriando-se inclusive das personagens femininas conhecidas por senhoritas, agora são tanto eles como elas a assumir figuras dos dois géneros. E já nem sequer é preciso ter nascido em Lazarim para desfilar no seu Entrudo.
O programa da Terça-Feira Gorda passou, mais recentemente, a ser rematado por um disputadíssimo concurso de máscaras, incluindo um galardão na especialidade de fantasias completas. Como em Lazarim não há lugar para uniformes, cada careto pode e deve disfarçar-se à medida da sua extravagância, recorrendo a materiais da terra, tais que a palha, as barbas de milho, ou os ramos de mimosas, acrescentando adereços igualmente rústicos como cajados, enxadas e forquilhas. Assombrosos, por vezes até sensacionais, sobretudo quando combinados com as máscaras certas, estes preparos dissimulam por completo o corpo e, por consequência, o género de quem os veste. São por isso frequentes os enganos e as exclamações de surpresa, na hora de atribuir os prémios e de tirar as máscaras. É quando se vem a descobrir que a rainha muito zelosa do seu busto generoso é, na verdade, um moço imberbe e delgado. Que o javali ameaçador é, afinal, uma cinquentona bonacheirona, ou que o diabo de cornos entrelaçados se revela uma adolescente corada e acanhada.
Esta equivocidade faz a imagem de marca do Carnaval de Lazarim. Mas as máscaras não são tudo; na verdade, o desfile de caretos está longe de constituir a atracção principal para muito dos fãs deste original Entrudo. O centro da acção - certamente o momento mais esperado e secretamente antecipado dos festejos - é a leitura dos Testamentos do Compadre e da Comadre, uma espécie de guerra dos sexos encenada em registo declamatório, que virtualmente envolve toda a facção adolescente e celibatária da terra. Rapazes e raparigas passam semanas a reunir-se à parte e secretamente, para redigirem os Testamentos onde dissecam os defeitos dos seus conterrâneos do sexo oposto. Esses versos desdenhosos são finalmente divulgados na tarde de Terça-Feira Gorda e na praça pública, que é como quem diz do alto do palco montado para o efeito, frente a um mar de gente na central Praça do Padrão.
Ao palco sobem duas raparigas e dois rapazes, um de cada sexo para declamar o testamento burlesco, os outros para carregarem a mascote do género respectivo, que no final irá a enterrar num show pirotécnico. Também as raparigas de Lazarim se emanciparam, ganhando desde 1985 o direito à reciprocidade na denúncia pública dos vícios do sexo oposto. Na prática já os superaram no grau de veneno e até na asneira. Porque é muito à base do palavrão e da piada picante que os supostos podres e perversões dos retratados são expostos. Sabemos que é tudo Carnaval, mas ao fim de uma hora deste implacável lavar de roupa suja, proclamado em tom acusatório sem risos nem contemplações, ficamos convencidos que mesmo numa comunidade tão plácida e remota como Lazarim ninguém é santo, nem bom partido, pelo menos entre a entrada na adolescência e a idade de casar.
A leitura dos Testamentos é um ritual desconcertante, sobretudo quando comparado com a folia mais anódina dos caretos. Antes, ao que parece, a caução da máscara servia em Lazarim para desferir umas pancadas valentes numa vizinha mais irritante, ou até para castigar um marido menos cumpridor. Já os caretos do novo milénio são como esculturas vivas, prodígios visuais mais dados a posarem para os telemóveis dos forasteiros, que propriamente dispostos a perseguirem e chocalhar as miúdas solteiras. Pelo contrário, toda a acção neste Carnaval - sobretudo a que inclui provocação e azedume - é desempenhada por rapazes e raparigas sem máscaras, dispostos a digladiar-se antes de eventualmente darem o nó.
Passos em volta
Os Testamentos nunca foram peças de literatura refinada, mas o ênfase na linguagem explícita surge como uma inflexão recente, uma novidade a que certamente não é estranho o aumento de forasteiros em Lazarim por alturas do Entrudo. A mistura de poesia rústica com vocabulário hip hop é, aliás, parte de um conjunto mais alargado de concessões ao gosto urbano. A autenticidade versus as cedências - este é o dilema, a grande questão que se levanta, agora que as máscaras de Lazarim e os caretos de Podence se candidatam a Património da UNESCO. Foi justamente o tema do debate Festividades do Entrudo, promovido no primeiro sábado deste Fevereiro, na Casa do Careto em Lazarim, onde se falou de planos de salvaguarda das tradições, mas também de antídotos contra a desertificação, procurando conciliar autenticidade com retorno económico, não excluindo a massificação do Entrudo.
Chamar gente das cidades por meia dúzia de horas não chega. A rentabilidade implica transformar a festa do Carnaval num programa de turismo rural para quatro dias. A estratégia passa por estender e diversificar os cortejos etnográficos, admitindo nos desfiles convidados de fora. Nada de convocar modernices, claro, mas outros arautos da tradição, incluindo ranchos folclóricos, zés pereiras e caretos de freguesias vizinhas. Depois há coisas mais institucionais ou mais culturais, como as exposições na Casa do Careto de Podence e os eventos promovidos pelo ainda recente Centro Interpretativo da Máscara Ibérica, no remodelado solar dos Viscondes de Lazarim. Neste cartaz figuram raids fotográficos e workshops de artesanato.
Há, finalmente, sugestões que já não têm nada a ver com o Carnaval, ou que simplesmente aproveitam o pretexto das festividades para promover o património de proximidade. Em Lazarim vale sobretudo a pena tomar a direcção da serra e da aldeia de Mazes, para aí apanhar o percurso pedonal (extensão de 6km) que conduz à antiga Aldeia da Anta. Lá se encontram 50 casas abandonadas, na maior parte de dois pisos, construídas em granito com telhados de colmo, que são uma excelente ilustração da arquitectura rústica da região. Nas imediações de Podence a principal atracção natural é a albufeira de Azibo, mancha de paisagem protegida sulcada por uma rede de trilhos sinalizados, que vão revelando paisagens de uma quiescente beleza.