Itamar Vieira Junior: “O Brasil nunca perdeu o status colonial”

Para o vencedor do Prémio Leya 2018, o mundo rural brasileiro mantém-se num estado quase feudal. O romance em que o descreve, Torto Arado, é lançado em Lisboa.

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Itamar Vieira Junior está em Lisboa para lançar Torto Arado MIGUEL MANSO

Em Outubro, o brasileiro Itamar Vieira Junior (Salvador da Bahia, 1979) tornou-se o mais recente vencedor do Prémio Leya, com o romance Torto Arado, que acaba de ser publicado e será lançado esta tarde na Livraria Buchholz, em Lisboa. Ambientado no sertão nordestino, e abarcando as últimas quatro décadas, insere-se na tradição do “romance rural” brasileiro, e é devedor, por exemplo, de Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, entre outros. O escritor brasileiro Paulo Werneck, que foi membro do júri do prémio, considerou-o um “romance político”. Mas, em conversa com o PÚBLICO, Itamar Vieira Junior prefere não rotular o seu livro, embora reconheça que há nele uma dimensão política, como em tudo o que diz respeito à experiência humana: “O que nos move é aquilo que nos incomoda. Para mim é quase indissociável fazer arte, no meu caso literatura, sem ser provocado por alguma coisa. Esse é o sentido da arte, aquilo que nos toca, a experiência humana. E vejo a política como uma dimensão da vida humana. O facto de hoje se compartimentar o que é política e o que não é política abre um vazio e a possibilidade de ele ser preenchido, por exemplo pela extrema direita. Não vejo a vida dissociada da política.”

Em Torto Arado conta-se, a três vozes, a história de uma família que vive num quilombo (comunidades auto-organizadas de escravos libertados) no sertão da Bahia, uma região semi-árida. O leitor acompanha as vidas de Bibiana e de Belonísia, filhas de trabalhadores rurais, e com elas também a evolução da sua família – o pai era um curandeiro e líder espiritual – e dos movimentos de insubordinação pela posse da terra. Ao longo do romance, vai-se esboçando um quadro de injustiça e de imposição de servidão aos trabalhadores rurais. O modo de vida vai evoluindo: é construída uma escola depois de muito esforço, há um hospital a que se tem acesso apenas em casos gravíssimos, como o que ocorre no início da narrativa. Mas aquilo que vai sobressaindo é a imobilidade das estruturas sociais e fundiárias, a servidão que é disfarçada com um sentimento de gratidão dos explorados por poderem trabalhar naquela propriedade e serem pagos quase sempre em géneros, a desconfiança com que são olhados aqueles que tentam mudar as coisas.

Parece, mas não é, uma coisa de ontem: “Os grandes proprietários continuam ditando como é que se vive nesses lugares, continuam explorando os trabalhadores, continuam matando opositores”, afirma Itamar Vieira Junior. “O que é uma coisa impensável no século XXI. A trama deste romance termina nos dias de hoje, e eu gostaria de dizer: isto não existe mais no Brasil, está datado. Mas não, isto é a realidade. No ano de 2017, 70 trabalhadores rurais que de alguma forma lideravam [grupos] pedindo mudanças foram assassinados. E esses actos continuam sem ser esclarecidos. É claro que existe uma vontade muito forte de manter este estado de imobilidade. Existem também inúmeros conflitos de fazendeiros, madeireiros, com as populações indígenas que vivem em reservas, que vêem a sua terra invadida, que são expulsas por força do capital, por força do agro-negócio, da expansão agrícola. Esses problemas não são enfrentados efectivamente pelo Estado brasileiro.”

Comunidades quilombolas como aquela onde decorre a acção do romance – o autor, que é geógrafo de formação, doutorou-se em Estudos Étnicos e Africanos com um trabalho sobre uma destas comunidades – são um bom exemplo de como muito pouca coisa mudou no Brasil na relação do Homem com a terra, sobretudo no âmbito do direito à posse. O Brasil que escravizava a população negra arranjou forma, depois da lei da abolição da escravatura, de garantir que tudo ficaria quase na mesma. Vieira Junior explica: “Como esses escravos não tiveram nenhuma política que lhes desse acesso à terra, permaneceram trabalhando para o latifundiário [os antigos donos de escravos], e também os seus descendentes, até hoje. A mesma coisa acontece com os indígenas.”

Amparado por uma estrutura fundiária que se mantém desde há pelo menos dois séculos, e que permite a manutenção dos tiques coloniais da pirâmide social – o proprietário (colono) branco e o trabalhador negro ou caboclo –, o Brasil, ou quem detém o poder no Brasil, procura que nada disto se altere, infere-se da leitura de Torto Arado. “O Brasil não perdeu esse status colonial, as estruturas sociais e fundiárias mantêm-se. Quando a abolição da escravatura permitiu a liberdade da população escravizada, não houve direitos para compensar essas pessoas, elas continuaram sendo exploradas. Continuamos sem uma reforma agrária eficiente, efectiva, que mude de vez a relação do Homem com a terra e a estrutura fundiária do país”, defende o escritor.

A vergonha da escrita

Itamar Vieira Junior diz-se oriundo de uma “família muito simples” para a qual a leitura não era uma rotina. Filho de um pai operário e de uma mãe doméstica, não tinha em casa livros para além da Enciclopédia do Estudante. Foi nas bibliotecas das escolas que frequentou que começou a ler obras literárias. Nunca foi estimulado pelos pais a escrever, mas redigiu as suas primeiras coisas ainda muito novo. “No princípio escrevia peças de teatro para interpretar com os colegas na hora do recreio. A minha mãe uma vez encontrou-as, achou-as demasiado adultas, talvez sexualizadas, e repreendeu-me. E eu passei a ter vergonha de mostrar o que escrevia. Mas isso nunca me deixou parar.”

Muito impressionado com os romances regionalistas brasileiros, começou a escrever esta história com que venceu o Prémio Leya 2018 – uma outra versão dela – aos 16 anos. Depois, numa mudança, acabou por perder as 80 páginas já escritas. Mas não perdeu o título nem a ideia da história das duas irmãs, uma das quais fica sem a língua por acidente, ao tentar desvendar um segredo antigo da avó. O tempo passou, e um dia recomeçou a escrita desse romance: foram dois anos de trabalho, algumas horas todos os dias, até que o acaso – sob a forma de notificações do Google para concursos literários – o informou de um concurso em Portugal.

Mais do que de influências, Itamar Vieira Junior prefere falar de leituras que se repercutem na forma e nos temas daquilo que escreve, e essas leituras são as esperadas para quem já leu o livro: Raduan Nassar, Guimarães Rosa, Jorge Amado, e João Cabral de Melo Neto. Destes, parece falar com mais entusiasmo de Jorge Amado: reconhece que a primeira parte da obra do autor baiano “é um pouco panfletária”, mas argumenta que a obra da maturidade, que talvez se inicie em 1958 com a publicação de Gabriela, Cravo e Canela, ganha uma dimensão universal, e elogia-lhe ainda o “questionamento social forte”.

Nascido na cidade onde Jorge Amado viveu e morreu, Salvador da Bahia, a relação do vencedor do Prémio Leya com o campo era quase nula. A primeira relação com o mundo rural, conta, teve-a através da literatura e do fascínio que depressa sentiu. Foi só mais tarde que esse conhecimento se tornou efectivo. “Quando me formei como geógrafo, comecei a ter oportunidades de trabalhar com populações rurais, e há 12 anos que estou nesta vida de viajar, conhecer trabalhadores rurais, propriedades. Comecei a conhecer um universo muito diferente do meu, e ao mesmo tempo a notar que muito pouca coisa mudou. Comparados com [o que relatam] aquelas obras escritas nas décadas de 1930, 40, 50, os nossos problemas sociais parecem ser os mesmos. Pega-se num romance como Grande Sertão: Veredas [a obra-prima de Guimarães Rosa] e percebe-se logo que o Brasil não superou aquelas questões, aqueles conflitos. Quase que poderia ter sido escrito hoje.”

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Itamar Vieira Junior assume como referências os escritores Raduan Nassar, Jorge Amado, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto MIGUEL MANSO

Mas foi durante o trabalho para a tese de doutoramento que contactou e conheceu uma comunidade quilombola como a que descreve no livro, e ouviu as suas histórias. “Essas histórias de alguma forma me atravessam, e ajudaram de facto a compor a densidade psicológica destas personagens, embora não tenha existido uma Bibiana ou uma Belonísia. Não existe ninguém que perdeu a língua, que ficou sem voz. Mas o universo do livro vem daí.”

Religião e violência

A última das vozes que narra Torto Arado é de um espírito, um “encantado” – uma figura do Jarê. Quisemos saber que religião era esta, e como existe. “É uma mistura de catolicismo rural com religiões de matrizes africanas e religiões indígenas. É falado em português, ao contrário do candomblé, que é falado em línguas africanas como ioruba ou o banto. É voltado para a cura espiritual, porque no Jarê se entende que qualquer enfermidade do corpo é o reflexo de um espírito desestabilizado. Ainda se encontram casas de Jarê na Chapada Diamantina.”

Não é por acaso que a última narradora é um espírito, o tal “encantado”, que transita ao longo do tempo e pode ver que pouca coisa mudou, que a escravidão acabou no papel mas permanece na vida das pessoas, na maneira como são exploradas.

Em Torto Arado, a luta pela posse da terra acontece depois da morte do pai, Zeca Chapéu Grande. Como líder espiritual e político, ele mantivera durante muito tempo adormecida essa necessidade de mudança, vendo a luta por melhores condições de vida como uma ingratidão em relação aos latifundiários. Tinha medo de prejudicar todos. E na verdade a comunidade vai enfrentar problemas, quando decide que tem direitos e que aquela terra pode ser sua. Até então, ele garantira a coesão. Quando morre, a religião morre um pouco também, porque ninguém assume esse papel. Mas a política ocupa o seu lugar, e com ela vem o discurso da História, pela voz da personagem de Severo, que diz algo como: nós podemos mudar, nós conhecemos outros trabalhadores quilombolas de outras fazendas, nós descendemos dos escravos que não receberam nenhum estatuto social, nenhum amparo para poder produzir. A acção política substitui um pouco a religião.

A violência doméstica é um assunto muito presente no livro, e Itamar Vieira Junior confessa que era para ele inevitável falar da condição das mulheres, sendo, e não por acaso, as protagonistas mulheres. “Os agressores encontram amparo pela ausência de política de punição, e continuam a cometer abusos. É uma sociedade patriarcal, e nós vemos isso no Parlamento: o que aconteceu com a nossa primeira presidente eleita [Dilma Rousseff], a forma como ela foi destituída, houve muita misoginia naquela destituição. A mulher não deve ocupar certos espaços, certos lugares: essa violência é estrutural. O patriarcado ainda domina, e agora mais do que nunca com o porta-voz dos preconceitos a assumir a Presidência da República.”

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