Rebentou o tímpano à mulher com socos. Neto de Moura tirou-lhe a pulseira electrónica

Aplicação compulsiva da vigilância electrónica a condenados por violência doméstica tem sido revogada por vários juízes de tribunais superiores. Por causa disso há vítimas que vivem aterrorizadas.

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Como é possível? As opiniões dividem-se sobre se há lacunas na lei ou se é a sua aplicação que se revela deficiente. miguel manso

O juiz Neto de Moura, autor do célebre acórdão sobre o apedrejamento de mulheres adúlteras, voltou a pronunciar-se sobre violência doméstica. Num acórdão que proferiu no final de Outubro passado sobre um homem que rebentou um tímpano à mulher ao soco, o magistrado do Tribunal da Relação do Porto retirou ao agressor a pulseira electrónica que os colegas de primeira instância lhe tinham aplicado para garantirem que não se voltava a aproximar da vítima, depois de o terem condenado a uma pena suspensa.

Neto de Moura alegou que os juízes que condenaram o agressor não pediram autorização ao próprio para lhe aplicar semelhante medida, nem justificaram na sentença por que razão era imprescindível recorrer a este meio de controlo à distância para proteger a mulher. E não está sozinho nesta posição: há mais decisões no mesmo sentido vindas dos tribunais superiores.

“Esta mulher vive escondida, aterrorizada. Teve de trocar de casa”, conta o seu advogado oficioso, Álvaro Moreira, explicando que o agressor, um electricista de 53 anos, continuou a proferir ameaças de morte contra a ex-mulher já depois de ter sido condenado, por intermédio do filho do casal, que já é adulto, e de um irmão da vítima. “Quando os técnicos dos serviços prisionais lhe bateram à porta para lhe retirarem a pulseira que ela também usava para prevenir as autoridades em caso de aproximação do ex-marido ficou em choque. Disse-me: ‘Estou outra vez à mercê dele’.”

Marido e mulher moravam num bairro camarário de S. Mamede de Infesta, Matosinhos, e de acordo com aquilo que ficou provado em tribunal o electricista nunca se coibiu de maltratar a companheira, nem mesmo durante a gravidez. As coisas agravaram-se, porém, nos últimos cinco anos do relacionamento, com ameaças de morte, bofetões e agressões verbais. Quando ele bebia dizia que ela era “uma puta, uma vaca que só tinha amantes, uma porca, que não valia nada”. Controlava-lhe os passos, e chegou a automutilar-se para lhe mostrar que não tinha medo de nada. “Vou-te matar e depois mato o teu filho”, apregoava.

Houve um dia em que lhe desferiu vários socos na cabeça, perfurando-lhe um tímpano. Gerente de um café, a mulher acabou por ter de fechar o negócio. Apresentou queixa, tendo sido aplicada uma pulseira electrónica ao electricista logo nessa altura, como medida de coacção. No Verão passado o homem foi condenado por um juiz do Tribunal de Matosinhos a três anos de pena suspensa por violência doméstica agravada, a pagar 2500 euros à vítima por danos morais e a frequentar um programa de controlo de agressores. Ficou ainda proibido de se aproximar da ex-mulher ou de a contactar de qualquer forma também durante este lapso de tempo. “Mais se determina que durante os três anos a fiscalização ocorra por meios técnicos de controlo à distância, dispensando-se o consentimento do arguido para esse efeito”, pode ler-se na sentença.

Falha na lei

Diz a lei da prevenção da violência doméstica que a aplicação da pulseira electrónica a este tipo de criminosos “depende do consentimento do arguido” – a não ser que o juiz, “de forma fundamentada, determine que a utilização de meios técnicos de controlo à distância é imprescindível para a protecção dos direitos da vítima”. Depois de o electricista ter recorrido da condenação alegando, entre outras coisas, que acedera a tratar-se do alcoolismo e nunca mais se aproximara da ex-mulher, Neto de Moura retirou-lhe a vigilância electrónica e reduziu para um ano o período de proibição de aproximação. “A utilização desses meios requer, desde logo, um juízo de imprescindibilidade dessa medida. Mas a sentença omite essa fundamentação”, justificou Neto de Moura. Por outro lado, assinalou, o uso da pulseira “está dependente do consentimento do arguido (...), que não se vislumbra que tenha sido obtido”. O facto de o electricista “nunca mais ter incomodado a sua ex-mulher” até ter sido condenado, cumprindo “escrupulosamente” a ordem de afastamento, foi outro dos argumentos usados pelo magistrado.

A situação é paradoxal: esta mulher esteve mais protegida enquanto o antigo companheiro foi um mero arguido do que está depois de este ter sido considerado culpado sem apelo nem agravo. Como é possível?

As opiniões dividem-se sobre se há lacunas na lei ou se é a sua aplicação que se revela deficiente. “A solução legal parece-me equilibrada do ponto de vista dos direitos dos envolvidos”, observa a penalista da Faculdade de Direito de Coimbra Maria João Antunes. “A decisão judicial que determine a utilização de meios técnicos de controlo à distância sem o consentimento do arguido é ilegal. Ou nula, por falta de fundamentação, se a utilização dos meios técnicos de controlo à distância for imprescindível para a protecção dos direitos da vítima e o juiz não fundamentar a decisão.” No mesmo sentido vai a posição do advogado Carlos Pinto de Abreu: “A lei está bem feita, permite os dois tipos de soluções e responsabiliza os juízes.” Este penalista põe o dedo na ferida ao mencionar uma questão pouco debatida: aplicar a vigilância electrónica à revelia do visado é meio caminho andado para a medida falhar, porque depende dele carregar a bateria ao equipamento.

Já para André Lamas Leite, da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, “existe sem dúvida uma falha na lei”: “Devia dispensar o consentimento do arguido sempre que estivesse em causa a segurança da vítima. Doutra forma, estamos a fazer uma fraude à decisão judicial” que determinou o uso do equipamento. Enviar para a cadeia quem se recusa a usá-lo não é uma hipótese em casos, como é o de Matosinhos, em que a proibição de contactos é uma pena acessória e não a pena principal.

"Flagelo social"

O presidente da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, João Lázaro, mostra-se chocado com aquilo que considera ser “uma grande diferença entre a lei escrita e a sua aplicação”. E fala da necessidade de formar melhor os juízes e de lhes proporcionar assessorias técnicas que lhes permitam “julgar melhor”.

“A eficácia do sistema não pode levar ao cerceamento de direitos”, ressalva. “Mas também não pode levar à desprotecção da vítima.”

Já no entender de Elisabete Brasil, da UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta, nem sequer faz sentido que o condenado possa rejeitar o castigo que o sistema lhe está a dar. Casos como este “são uma boa chamada de atenção para os juízes de primeira instância fundamentarem melhor este tipo de decisões”.

Neto de Moura reconhece neste acórdão que a violência doméstica, em especial a dos maridos sobre as mulheres, constitui um “flagelo social”. Mas está a cair-se num exagero prejudicial aos homens, vai avisando: “Se, durante muito tempo e até há uns anos, a vítima de violência doméstica sentia que o mais provável é que a sua denúncia acabasse em nada (...), a verdade é que, nos últimos tempos, se têm acentuado os sinais de uma tendência de sentido contrário, em que a mais banal discussão ou desavença entre marido e mulher é logo considerada violência doméstica e o suposto agressor (geralmente o marido) é diabolizado e nenhum crédito pode ser-lhe reconhecido”.

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