Expostos objectos da vida profissional e pessoal de Odette Ferreira
Exposição sobre pioneira da investigação e luta contra o VIH tem entrada livre no Museu da Farmácia, em Lisboa.
Pela primeira vez, o diário científico onde Odette Ferreira (1925-2018) registou os passos da investigação que culminou na descoberta de um segundo tipo de vírus da sida – o VIH-2, em meados dos anos 80 – encontra-se exposto publicamente. É na exposição Odette Ferreira – Construir Futuros no Museu da Farmácia, em Lisboa, que foi inaugurada na última quinta-feira pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e que poderá visitar-se até pelo menos finais de Junho. De segunda-feira a domingo, das 10 às 19 horas, tem entrada livre.
Da exposição sobre a farmacêutica, professora universitária e investigadora, que morreu a 7 de Outubro de 2018 aos 93 anos, faz ainda parte um casaco onde transportou – “de forma não convencional”, assinala o Museu da Farmácia – as amostras de sangue para Paris, para o Instituto Pasteur, a partir das quais o VIH-2 seria descoberto. “Em Portugal, não tínhamos condições científicas para realizar essa investigação. E a única forma de manter a temperatura nos 37 graus era as amostras irem junto ao corpo”, conta ao PÚBLICO João Neto, director do Museu da Farmácia. “Era a forma prática e eficaz de manter as amostras vivas para as análises.”
De facto, Odette Ferreira, que era da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, levou para França amostras de sangue de doentes que estavam no Hospital de Egas Moniz, em Lisboa, acompanhados aí pelos médicos José Luís Champalimaud e Kamal Mansinho. Eram doentes oriundos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde com sida, mas não se conseguia detectar no seu sangue anticorpos contra o VIH-1, vírus que tinha sido descoberto em 1983, pela equipa de Luc Montagnier, no Instituto Pasteur. Odette Ferreira intuiu que haveria um vírus novo e levou amostras de doentes para o Instituto Pasteur, onde em conjunto com cientistas franceses veio a isolar o VIH-2.
Ora na exposição está o caderno de apontamentos que Odette Ferreira utilizou durante uma estadia no Instituto Pasteur (de 16 a 26 de Setembro de 1985) e onde anotou a descoberta do VIH-2. Numa das páginas do caderno, que segundo João Neto também tem notas das suas investigações em Portugal sobre o vírus, lê-se “isolamento de vírus a partir de sangue do doente”. Embora o caderno esteja aberto numa página, pode depois ser folheado electronicamente.
“O caderno tem um valor científico brutal. Não é batido à máquina nem no computador, é o manuscrito dela”, sublinha João Neto, dizendo que tanto o caderno como o casaco foram doados por Odette Ferreira ao Museu da Farmácia no início do século XXI. “Ter este diário é ter a ciência ao vivo.”
Na exposição, também se pode ver uma das primeiras imagens do VIH-2 observadas por Odette Ferreira no Instituto Pasteur em 1985.
A revelação da existência de um segundo tipo de vírus da sida ocorreu em 1986. Primeiro, em Março desse ano, na revista Comptes Rendues de l’ Académie de Sciences de Paris – e, além de Luc Montagnier e Odette Ferreira, entre os autores do artigo científico estão ainda José Luís Champalimaud, Kamal Mansinho e Jaime Nina (também do Hospital de Egas Moniz). Depois, em Julho de 1986, a descoberta foi publicada ainda na revista Science, com Odette Ferreira e José Luís Champalimaud novamente entre os autores.
Mais tarde, a notícia chegaria aos meios de comunicação social, como o então Diário Popular, que em Outubro de 1986 fez manchete com a descoberta: “Depois de americanos e franceses, cientista portuguesa isola vírus da sida.”
Na exposição, os visitantes não só podem ver o microscópio de trabalho de Odette Ferreira na Faculdade de Farmácia de Lisboa, como tubos com as estirpes de bactérias que deram origem ao seu doutoramento sobre as infecções hospitalares, em 1977. A farmacêutica portuguesa desenvolveu estudos epidemiológicos na área das infecções bacterianas hospitalares, investigações que estiveram na base da sua tese de doutoramento na Universidade de Châtenay-Malabry, em França.
Mas além da investigação científica, Odette Ferreira distinguiu-se também na luta contra esta infecção. Entre 1992 e 2000, foi coordenadora da Comissão Nacional de Luta Contra a Sida, tendo desenvolvido projectos de prevenção e combate à disseminação da doença.
Um desses projectos foi a troca de seringa nas farmácias – “Diz não a uma seringa em segunda mão”, lançado em 1993 – para diminuir o risco de transmissão do VIH e de outras doenças transmissíveis (hepatites B e C) na população toxicodependente por via endovenosa. Foi o primeiro programa de troca de seringas no país: em 2500 farmácias foram distribuídos 200 mil kits (com um preservativo, um toalhete desinfectante e uma seringa esterilizada), para serem trocados por seringas usadas. Outra das peças originais da exposição é precisamente o primeiro kit utilizado no programa de troca de seringas nas farmácias.
Logo à entrada da exposição, os visitantes sentirão na pele o isolamento e a marginalização a que eram sujeitos os doentes seropositivos. “Lembro-me que havia quem mudasse de passeio só para não se cruzar comigo”, lembrou Odette Ferreira na sua biografia Uma Luta, Uma Vida – Nem Precisava de Tanto, de Sandra Nobre (edição Sopa de Letras, 2014). “Na faculdade, o director não queria que eu trabalhasse, com medo que eu infectasse alguém. As pessoas achavam que se transmitia com um aperto de mão.”
A curadora da exposição, Paula Basso, que também é directora adjunta do Museu da Farmácia, destaca como Odette Ferreira combateu essa marginalização: “A professora sempre lutou contra o estigma, através de campanhas, atitudes e iniciativas de apoio às pessoas seropositivas.”