Não há nada além do “Brexit” nos tories, dizem deputadas ao sair do partido
Três deputadas conservadoras viram as costas ao partido e juntam-se aos oito trabalhistas que abandonaram o Labour. “Brexit” faz estremecer alicerces do sistema político britânico.
“É o ‘Brexit’ que hoje define e configura o Partido Conservador”. É desta forma pragmática e provocadora que Anna Soubry, uma de três deputadas do partido de Theresa May que esta quarta-feira formalizaram a adesão ao Grupo Independente, formado por dissidentes do Labour, justifica a decisão de se desfiliar dos tories.
O “sequestro” da facção eurocéptica e hard-brexiteer à estratégia da primeira-ministra para a saída do Reino Unido da União Europeia tornou-se incomportável para estas deputadas, cuja reacção pode acelerar a reconfiguração do velhinho sistema de dois partidos que tem governado o país nas últimas décadas.
“Ninguém se junta a um partido político para o combater. Mas a verdade é que a batalha acabou, o outro lado venceu. O embaraçoso esquadrão da linha dura antieuropeia que destruiu todos os líderes dos últimos 40 anos está agora a controlar o Partido Conservador dos pés à cabeça. Eles são o Partido Conservador”, lamentou Soubry, em conferência de imprensa, acompanhada por Sarah Wollaston e Heidi Allen, as outras deputadas tories que renunciaram ao partido do Governo para se juntarem a Chuka Umunna e companhia.
“O ‘Brexit’ redefiniu o Partido Conservador, revertendo todos os esforços para o modernizar. Temos assistido a um falhanço deplorável em enfrentar o extremista ERG [European Research Group, o grupo de deputados eurocépticos conservadores], que funciona abertamente como um partido dentro do partido, como o seu próprio líder, líder da bancada e política”, escreveram as três, numa carta a May, divulgada ao final da manhã. “Não fomos nós abandonámos o Partido Conservador. O partido é que nos abandonou”, afiançou Soubry.
Ainda que mantenha uma maioria parlamentar, de oito deputados, a deserção e o discurso incisivo destas deputadas contra a sua liderança beliscam, uma vez mais, a autoridade de Theresa May, e fragilizam a sua posição negocial sobre o “Brexit”. A primeira-ministra apostou todas as fichas na renegociação do acordo de saída (e no backstop irlandês), dizendo-se mandatada pelo Parlamento para o efeito, mas continua a somar desilusões e a perder argumentos, junto de Bruxelas, de que tem capacidade para conseguir uma maioria que aprove um compromisso final.
Lideranças em xeque
Mas não é apenas a primeira-ministra que sai debilitada deste novo capítulo da política britânica. Porque a onda de rescisões teve início dentro do Partido Trabalhista, na segunda-feira, quando Umunna e outros seis deputados trabalhistas – uma oitava trabalhista juntou-se-lhes na noite de terça-feira – anunciaram a deserção, tem como alvo Jeremy Corbyn e o que afirmam ser os três eixos fundamentais da liderança: a posição ambígua sobre o “Brexit”, a sua agenda “marxista” e “institucionalização” do anti-semitismo no Labour.
Talvez, por isso, nem um nem outro líder fizeram qualquer referência às respectivas debandadas nos seus partidos, na sessão de perguntas à primeira-ministra, esta quarta-feira na Câmara dos Comuns. O elefante na câmara, refira-se, esteve sempre presente, até porque os 11 membros do Grupo Independente se sentaram juntos, na bancada da oposição, e publicaram selfies sorridentes antes da sessão.
Estranhamente, também eles aderiram ao silêncio generalizado sobre a nova composição parlamentar, abdicando de questionar May ou de fazer uma mera declaração de intenções.
A reacção da líder do Governo veio sob a forma de um comunicado e não foi particularmente diferente da de Corbyn, na véspera. May também lamentou a saída de Soubry, Wollaston e Allen, mas, à semelhança do líder trabalhista, recordou às deputadas que o Partido Conservador e os seus membros se devem reger pelo programa que assinaram para as eleições de 2017, muito marcado pelo resultado do referendo à Europa, um ano antes.
“Cumprindo o compromisso do nosso manifesto e pondo em prática a decisão dos britânicos estamos a fazer o que é mais correcto para o nosso país”, resumiu May.
Como comprova o caso do ERG, o labiríntico processo do “Brexit” já tinha trazido para a Câmara dos Comuns uma nova forma de fazer política, desamarrada da tradicional disciplina partidária imposta há décadas pelos dois maiores partidos britânicos aos seus deputados.
Numa entrevista recente ao PÚBLICO, o professor de Política Comparada da Universidade de Bath, Roger Eatwell, alertara para o “riscos de implosão de sistema político estável a partir do centro”, motivados pelas mudanças “nos procedimentos” que estão a “permitir que os deputados desafiem o Governo”, “reafirmando a soberania do Parlamento”.
Questionado sobre o possível impacto das movimentações dos últimos dias para um cenário de fragmentação política, Eatwell mostra-se, porém, comedido. “Estas dissidências são de pessoas com um perfil baixo ou reduzido, em comparação com a cisão do Labour, em 1981, que teve uma cobertura jornalística favorável [quando Tony Benn se candidatou, sem sucesso, contra o então vice líder Denis Healey], considera o académico britânico. “Serão necessárias mais dissidências, idealmente de nomes mais conhecidos, tanto no Partido Conservador como no Partido Trabalhista. Só aí se perceberá se poderá emergir um novo partido”.
É, por isso, no recrutamento de mais deputados que depende o sucesso do Grupo Independente, especialmente no que ao “Brexit” diz respeito. Todos os 11 membros do movimento são remainers e apoiantes da realização de um segundo referendo. Mas isso não traz nada de novo na matemática parlamentar, nem consegue, só por si, alterar o sentido de voto da Câmara dos Comuns. Porque todos têm vindo a furar as disciplinas partidárias dos respectivos ex-partidos e a votar de acordo com as suas convicções.
A adesão de mais deputados pode, no entanto, ajudar a criar uma terceira força no Parlamento, que baralhe as contas Theresa May. E a Jeremy Corbyn, também.