Tara Westover, a rapariga que existia à espera do fim do mundo
Cresceu sem certidão de nascimento, sem ir à escola ou ao médico, numa família de religiosos radicais que a preparavam para o fim do mundo. Aos 17 anos, ficou chocada com a dimensão da sua ignorância. Dez anos depois tinha um doutoramento por Cambridge e escreveu as memórias. Uma Educação é uma prova de resistência também na leitura. Ela conta aqui como foi.
Percorrer as montanhas do Idaho é ter a sensação forte de que alguém pode ficar ali esquecido — ou deixar-se esquecer — para sempre. Sem a extensão das imensas planícies do Sul que iludem acerca da possibilidade de um olhar infinito, capaz de abarcar tudo, o horizonte recortado do extremo noroeste dos Estados Unidos permite o recolhimento de uma toca. É um lugar que sugere a hipótese de ser, em grande parte, inexpugnável. Viver como um eremita entre o gelo dos invernos longos e o verde da floresta recortado pela neve derretida em linhas de água no verão generoso faz parte do imaginário variado da América. Talvez por isso, Tara Westover pudesse ter existido ali como se não existisse de facto.
Até aos nove anos não teve certidão de nascimento. Até aos 17, nunca frequentou uma escola e nunca foi a um médico. Não sabia o dia em que nasceu e não achava isso estranho. Achava que todos podiam escolher a data de celebrar o aniversário. No seu caso, a mais conveniente a cada fim de Setembro. No mundo de Tara Westover todos trabalhavam, crianças e adultos; as mulheres mais, porque a tudo o resto acumulavam as tarefas domésticas e a maternidade. Aos domingos ia à missa e vagueava pela sucata do pai. Pelos montes.
Não é um filme, não foi num tempo longínquo, não é mito, mas faz parte de uma mitologia de vida. Rara, violenta, dogmática, com momentos de felicidade ou próximos disso. Aconteceu entre os anos 90 do século XX até à primeira década deste século, o momento em que a curiosidade levou Tara Westover a sair da montanha. Tinha 17 anos e, aos 27, completava um doutoramento em Cambridge, no Reino Unido, coisa que não cabia na imaginação da rapariga que, com dez anos, trabalhava na sucata do pai, por onde já haviam passado os seis irmãos mais velhos.
“Fora educada segundo os ritmos da montanha, em que a mudança nunca era fundamental, apenas cíclica. O mesmo Sol aparecia todas as manhãs, varria o vale e descia atrás do pico. As neves que caíam no inverno derretiam sempre na primavera. A nossa vida era um ciclo, o ciclo do dia, o ciclo das estações, ciclos de mudanças perpétuas que, quando completadas, significavam que absolutamente nada mudara. Eu acreditava que a minha família fazia parte deste padrão imortal, que, de alguma maneira, éramos eternos. Mas a eternidade era apenas atributo da montanha”, escreve em A Educação, memória de como viveu e sobreviveu entre a natureza, um pai indulgente, religioso radical que acumulava alimentos, acreditando que o fim do mundo estava próximo, que dizia que “um dia haveria de viver completamente à margem do sistema”, uma mãe ervanária que lhes cuidava da saúde, os abusos de um irmão mais velho, e uma única expectativa de vida: “Quando fizesse dezoito ou dezanove anos, casava-me, o pai dava-me um canto da quinta, e o meu marido construía ali uma casa. A mãe ensinava-me a usar ervas medicinais e o trabalho de parteira (...) Quando tivesse filhos, seria a mãe a ajudá-los as nascer, e um dia, imaginava, seria eu a parteira.” Não foi assim. E A Educação transformou-se num dos textos mais comentados de 2018, com Bill Gates e Barack Obama a recomendá-lo, considerado um dos livros do ano em muitos suplementos literários e a sua autora olhada como uma espécie de heroína, com a capacidade de contrariar não a força de uma montanha mas a de um pai desequilibrado criador de um ambiente onde não havia espaço para outros modelos de vida que não aqueles que ele, nessa montanha, lhe reservava.
“Acho que fui uma criança bastante feliz. Aquela era a realidade que conhecia”, diz Tara Westover ao Ípsilon, numa conversa a partir de um aeroporto, prestes a apanhar um avião para Nova Iorque, onde vive. Tem 32 anos, o livro saiu quando tinha 31, e faz tempo que não volta à montanha, embora ela permaneça na sua cabeça, “antiga e grandiosa como uma catedral”. Chama-se Buck’s Peak e fica no Sudeste do Idaho, junto à fronteira com o Utah. De lá, observa-se o regresso dos búfalos no início de cada primavera.
A curiosidade de Tara pelo mundo fora da montanha aconteceu ao ouvir os CDs de um dos seus irmãos mais velhos, Tyler. Ele era um inconformado com o mundo à volta, queria estudar, e tinha o único “tijolo” lá de casa”. “Foi o amor pela música que me fez explorar um pouco mais, estudar além da família. Não foi tanto a curiosidade em geral, mas a curiosidade que vinha de um gosto muito específico”, conta Tara. Na altura, pediu à mãe para a levar à cidade mais perto, onde quase só iam aos domingos à missa. Queria aprender a dançar. A “indecência” das roupas provocou a fúria do pai e levou a que a mãe a inscrevesse em aulas de canto. Sempre podia cantar na igreja, Ouviram-na e, pela primeira vez, viu um pai que não conhecia e se deixava encantar. Deixou-a ser Annie num espectáculo da cidade, porque ela era “uma graça de Deus”. Mas não participava das conversas dos outros, não sabia como.
“Eu nunca aprendera a falar como pessoas que não eram como nós, que iam à escola e que consultavam médicos; que não se preparavam, todos os dias, para o Fim do Mundo”, lê-se. Pela primeira vez também, Tara teve o sentimento de não pertença, isolava-se. “Era um tipo diferente de isolamento [do da montanha]. Quando estava isolada com a minha família não sabia o que era isolamento porque estava com muitas pessoas, com pessoas a quem sentia pertencer”, diz agora. Tinha então 12 anos e fixa nessa altura o tal princípio da curiosidade. Diz: “Fui explorar o mundo lá fora pela música e uma vez que saí aí sim, comecei a ter um pouco mais de curiosidade e quis aprender acerca de um monte de coisas.”
Dividido em capítulos curtos, cada um a funcionar como um conto, o livro segue uma cronologia de vida numa escrita elegante, com descrições pungentes, perguntas difíceis de uma criança, depois adolescente e uma jovem mulher sobre a sua relação com a família, com a religião, a procura de uma identidade, o questionar do papel da mulher, da poligamia entre os mórmons, o sentimento de culpa ou de traição que se instalava à medida que o seu conhecimento do mundo lhe mudava a perspectiva e a afastava irremediavelmente desse núcleo que aprendeu como essencial: o pai, a mãe, os irmãos, a casa, Buck’s Peak e uma doutrina, a de que “não podiam existir duas opiniões razoáveis sobre o mesmo assunto”, ou seja, “existe a Verdade e existe a Mentira”. Eles eram, achava Tara, “os únicos verdadeiros mórmones que conhecera”.
O livro de Tara tem sido comparado ao também muito aplaudido The Hillbilly Elegy (2016), de J. D. Vance, na altura com 31 anos (publicado em Portugal em 2017, pela D. Quixote, com o título Lamento de Uma Família em Ruínas). É também uma memória centrada num modelo familiar de uma América rural condenada pela sociedade que aprecia o sucesso e o dinheiro. Lá, estamos no Ohio interior narrado na primeira pessoa por alguém que conseguiu vencer o estigma e licenciar-se numa das prestigiadas universidades da Ivy League. Foi apontado como um livro essencial para entender parte da América que elegeu Donald Trump. “Acho que estilisticamente são dois livros muito diferentes, mas os dois vêm de um universo rural remoto. Há essa semelhança. E acho que ele faz um pouco de sociologia; eu conto uma história, só isso”, afirma Tara Westover.
É a história de uma rapariga que aprendeu a ler em casa, com a mãe, e que leu e sublinhou o Antigo Testamento, o Livro de Mórmon; que aprendeu a história de pioneiros, seus antepassados que se aventuraram “pelas regiões selvagens americanas”, e desenvolve uma aptidão crucial, “a paciência para ler coisas que ainda não compreendia”, e aos 16 anos decide pedir equivalência ao ensino secundário, num exame em que passou, e aos 17 se candidata a uma universidade em Salt Lake City. Leu todos os livros, conseguiu nota e entrou. Aí, foi confrontada com a sua mais terrível ignorância. Numa aula de História de Arte, levantou o braço para perguntar o que significava uma palavra. Nunca a ouvira, nunca a lera. Holocausto.
“Não sei se o choque foi por ter descoberto uma coisa horrenda ou por ter tomado consciência da minha ignorância”, escreveu. Também não sabia da escravatura, da luta pelos direitos civis nos anos 50 e 60 do século XX. Diz na conversa: “Foi chocante a escala do quanto eu não sabia. E se eu não sabia aquilo que mais não saberia?”
Estava traçada a sua área de interesse. A História. Na escrita deste livro, acaba por aplicar o método da pesquisa dessa disciplina. “Tentei, tanto quando possível, confirmar a informação acerca dos factos que tinha nos meus diários. Entrevistei pessoas, tentei documentar-me para desfazer discrepâncias. Acho que a minha formação em História influenciou o modo como encarei o livro e o escrevi; estabeleci uma cronologia e o modo como isso me permitia chegar a outros pontos de vista. É isso que a boa História faz, tocar outras narrativas, outras perspectivas”, argumenta. E pôs isso no livro, admitindo terem sido poucas as referências da literatura. Aos 16 anos leu Os Miseráveis, de Victor Hugo, e não foi capaz de distinguir Napoleão de Jean Valjean, o protagonista. Para ela eram duas figuras reais. “Demorou até ser capaz de distinguir entre história e ficção. É preciso aprender a ler literatura. Levou-me muitos anos”, admite.
Nos anos de Salt Lake City e depois, quando ganhou uma bolsa para estudar em Cambridge, e mais tarde quando foi convidada a fazer doutoramento em Harvard, e mais tarde ainda, quando voltou a Cambridge, estava exposta apenas à História e à Filosofia. “Nunca li muita literatura até decidir escrever este livro. Talvez os meus preferidos sejam Joan Didion, Tobias Wolff, Muriel Spark. Não li muitas memórias, mas li O Ano do Pensamento Mágico, de Didion, e achei maravilhoso”. Por essa altura já havia sido confrontada com as várias perspectivas acerca da História, diferentes maneiras de olhar o passado e isso desenvolveu uma espécie de independência de pensamento diante de muitas coisas. Filosofia, política, religião... “Assim que nos apercebemos que há ideias diferentes das das pessoas que nos rodeiam nunca se sabe até onde isso pode ir”, afirma Tara que vê isso como o grande desafio e também por isso decidiu escrever este livro em registo de memória. “Achei que a memória seria mais útil. Há uma grande estranheza, e mesmo estigma, que leva a que muitas pessoas não falem de forma aberta acerca de experiências limite. Quis que o livro pudesse ser útil a quem estivesse a lutar com isso. A memória é como se alguém estivesse ali a dizer: aconteceu-me isto.”
E o leitor acompanha a transformação de Tara de forma dura, partilha inquietações, entende a raiva, sente a humilhação, a fragilidade, a incapacidade dela perante o silêncio dos outros e a auto-justificação de que o mal está com ela porque ela só sabe ler através do discurso deles, dos que a rodeiam. Há trauma e ele instala-se também nela, que se acha capaz de tudo, com um instinto que vê como um anjo da guarda. Custa-lhe ainda falar os maus tratos, mas fala. Para isso escreveu, justifica. E interpreta a cumplicidade de quem sabia e nada fez antes os abusos. “As pessoas acharam mais fácil ignorar uma série de coisas. Os meus pais escolheram o caminho da negação e esse caminho era mais longo do que aquilo que eles pensavam. Na minha família, era maneira normal de lidar com aquilo; fazia parte de uma normalidade com lidavam com coisas difíceis. Simplesmente não lidavam. E isso chegou a um extremo.”
Parte da família não lhe fala, os pais puseram-lhe um processo em tribunal. Ela é um elemento do Mal. Assim, maiúsculo, como ela o aprendeu. “Queria contar uma história que desafiasse ideias pré-concebidas que temos acerca de educação. Muitas vezes pensamos em educação como tendo a ver só com graus académicos, que visa encontrar um emprego. Pensamos em instituições, salas de aula, e trabalhos de casa. Quis contar as diferentes formas como a educação muda quem somos e muda a nossa vida. Em inglês, quando se diz de alguém que é educado pode significar privilégio, academia, um monte de coisas. Quis libertar-me disso e fazer com que as pessoas se interroguem acerca do que significa ser educado.” Daí o título e m interesse que não se esgotou com o livro. Tara Westover está a estudar os alunos em contexto. Não chegou a muitas conclusões, apenas que a maioria não pensa ir para a universidade, mas o que quer fazer na quinta, se semear batatas ou criar vacas. “Sim, estou a tentar estudar de que modo crescer em ambiente rural dificulta uma formação universitária.” Já chegou a conclusões? “Ainda não. Mas acho que tem muito a ver com o facto de não haver exemplos na comunidade, os jovens não conhecem quem se tenha formado. É muito difícil ultrapassar isso se nunca se viu ninguém e não se pede ajuda. É a minha experiência.”
Quando terminou o livro mostrou-o aos irmãos com quem fala, os que, como ela, saíram da montanha e frequentam a universidade. Dos outros não sabe. O que ficou deles? “Muita coisa”, garante. E a religião? “Já não sou religiosa, mas tenho alguma sensibilidade em relação ao mormonismo. Não sinto que a minha família seja representativa do mormonismo, não sinto que a maneira como viviam seja mórmon; conheci muitos mórmons que iam ao médico e à escola. O meu pai era um radical e tinha ideias radicais acerca de tudo e também sobre a religião. Não culpo o mormonismo pelo modo como fui criada. Dito isto, já não sou mórmon. Gosto de avaliar cada coisa de cada vez, à medida que me vou deparando com elas e evitando visões dogmáticas.”