O poema que uma juíza escreveu e Sophia celebrizou
O mistério do falso poema de Sophia que se tornou viral está desvendado. Foi escrito em 2009 pela juíza Adelina Barradas de Oliveira, que quis homenagear a escritora no aniversário da sua morte. Sem pretensões literárias – “escrevo por escrever” –, vem agora deslindar uma confusão que não criou e que lhe passara ao lado.
Juíza desembargadora no Tribunal da Relação de Lisboa, Adelina Barradas de Oliveira é uma leitora de poesia e de vez em quando também gosta de praticar e publica alguns versos no seu blogue Cleopatra Moon. Foi o que fez no dia 2 de Julho de 2009, sem imaginar que iria dar origem a um equívoco de proporções virais, com o seu poema a ser atribuído a Sophia de Mello Breyner Andresen em milhares de páginas da Internet, para não falar de paragens teoricamente mais insuspeitas, como artigos académicos assinados por professores doutorados em Letras.
Nesse dia 2 de Julho cumpriam-se exactamente cinco anos sobre a morte de Sophia (1919-2004) e a juíza, homenageando a autora de Livro Sexto e Mar Novo, publicou na sua página um poema intitulado Sophia de Mello Breyner Andresen, que abria com o verso “Há mulheres que trazem o mar nos olhos”. Assinava com as iniciais ACCB, como sempre fazia quando os textos eram da sua autoria, mas algum frequentador mais desatento do seu blogue terá achado que a autora era a própria Sophia e partilhou-o como tal, intitulando-o O Mar dos Meus Olhos e dando origem a uma bola de neve que nunca mais parou de engrossar. Um erro talvez propiciado pelo facto de o poema de Adelina Barradas de Oliveira, sendo uma assumida homenagem, glosar alguns dos tópicos da autora a que prestava tributo, como o mar ou as praias.
Quando o PÚBLICO, há alguns dias, chamou a atenção para esta falsa atribuição que se reproduzia imparavelmente na Internet (Um falso poema de Sophia que se tornou viral), um leitor, Pedro Ferreira, ficou intrigado e foi investigar por conta própria. Quando chegou ao blogue Cleopatra Moon e a esse post de 2009 ficou convencido de que dera com a origem da confusão e divulgou a descoberta na sua página de Facebook, na qual se identifica com o pseudónimo literário Amadeu Liberto Fraga. Tinha razão este leitor, como a própria Adelina Barradas de Oliveira entretanto confirmou ao PÚBLICO, explicando que pretendeu apenas homenagear Sophia, numa data que para si é especial, já que coincide com o aniversário da sua filha. De resto, percorrendo o seu blogue – também gere páginas relacionadas com a sua profissão de juíza, mas Cleopatra Moon é o seu refúgio poético –, constata-se que todos os poemas alheios são devidamente creditados e que assina sempre com as suas iniciais os que são da sua própria lavra.
“Diga que os tais versos fraquinhos, que nunca poderiam ser da Sophia, são da Adelina Barradas de Oliveira” e que foram “escritos há 10 anos, no dia da morte de Sophia e na data do aniversário da filha da autora do blogue onde os encontrou”, sugeriu a juíza ao jornalista. “A César o que é de César, a Sophia o que na realidade é dela e a mim o que é meu”, acrescenta. “Assim, ficamos todos descansados e termina o mistério.”
Manifestando vontade de “solucionar uma confusão” para a qual, sublinha, não contribuiu em nada, a juíza garante que não tem pretensões literárias: “Escrevo por escrever, como quem fuma por fumar, ou vai até à beira do mar para poder respirar e voltar ao trabalho e à rotina do dia-a-dia. É assim como uma forma de estar sozinha comigo observando o mundo lá fora”.
Num trabalho publicado em Março de 2018, a propósito das eleições para a Associação Sindical dos Juízes, a cuja presidência Adelina Barradas de Oliveira concorreu, o PÚBLICO, ao traçar o perfil dos vários candidatos, já adiantava que os hobbies da juíza incluíam escrever poesia e textos de opinião, e ainda passear na praia. E quem navegar no seu blogue constata que continua a partilhar com alguma frequência textos com um registo mais ou menos assumidamente poético. Um dos mais recentes, intitulado Sílaba súbita, termina assim: “Ando com as sílabas todas desarrumadas e tenho de escrever para perceber o sítio delas./ Assim, de súbito, como se acabassem todas amanhã.”
E podiam citar-se outros exemplos de versos cujo mérito literário, procurado ou não, parece superior ao daqueles com que quis, há dez anos, homenagear Sophia, mas o gosto do público tem razões que a razão desconhece, e o certo é que nenhum outro poema da autora teve a fortuna de O Mar dos Meus Olhos, ao qual, por acaso, até nem deu esse título. Não será mesmo exagero afirmar que se trata de um dos mais divulgados poemas portugueses contemporâneos.
Fizemos uma rápida experiência e pesquisámos três conhecidos poemas de Sophia no Google, colocando entre aspas uma passagem que nos pareceu mais insusceptível de surgir noutro qualquer contexto, e repetimos a operação com O Mar dos Meus Olhos. O muito antologiado Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal registou 2810 resultados, o célebre poema ao 25 de Abril que abre com os versos “Esta é a madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo” ficou pouco abaixo dos 5000, e um poema de Mar Novo recorrente em exames do ensino secundário, que se inicia com os versos “Aquele que partiu/ Precedendo os próprios passos como um jovem morto”, ficou-se por umas escassas 59 ocorrências. O poema da juíza ultrapassou as 18.000.
Dado que os restantes poemas de Adelina Barradas de Oliveira não tiveram um impacto comparável e que a assinatura de Sophia também parece não bastar como garantia de que um poema se torna viral na Internet, talvez não seja abusivo especular que o improvável sucesso de O Mar dos Meus Olhos tenha resultado dessa associação de um nome muito conhecido e admirado a um poema capaz de agradar a uma gama muito diversificada de leitores, ainda que alguns, mais especializados (ou tão presunçosos como o que assina este texto), possam torcer-lhe o nariz.