“Às vezes precisamos mais de ser pais, avós, tios do que professores”
A Escola Básica do Bairro Padre Cruz, em Lisboa, tem das piores médias do país nos exames do 9.º ano. Aqui, antes de cumprir o programa é preciso atender a outras necessidades. De regras, de afecto. Miguel teve, além disso, quem puxasse por ele em casa.
Não há na escola um cartaz que o diga, nem está escrita em lado nenhum, mas há uma regra modelar na Escola Básica do Bairro Padre Cruz, em Lisboa: “Ninguém fica sem comer. Não tem dinheiro? Chamo os pais uns dias depois para perceber o que se passa. Na hora isso não interessa.” Rui Serrano, director, quer demonstrar como nesta escola “o ranking é outro”. Há questões anteriores ao cumprimento do programa ou desempenho escolar. Há a violência, o abandono, o desinteresse. Os problemas de casa a entrar sala dentro. “O que faz um professor quando uma criança não sossega porque os pais discutiram a noite toda? O nosso ranking não é o das notas, mas o da disciplina, da assiduidade. É o de dar a atenção e o carinho que muitos destes miúdos não recebem em mais lado nenhum.”
O contexto socioeconómico, está demonstrado, explica em grande medida as diferenças de resultados entre as escolas. Esta, sede de agrupamento, com 2.º e 3.º ciclos, fica num dos extremos do Bairro Padre Cruz, que muitos classificam como um dos maiores bairros sociais da Península Ibérica. Ocupa os últimos lugares no ranking dos exames e é das escolas em que uma menor percentagem de alunos faz o 3.º ciclo sem chumbos. Cerca de 92% reprovam entre o 7.º e o 9.º anos ou tiram negativa nas provas nacionais. Quatro em cada cinco recebem apoio escolar do Estado, atribuído quando o rendimento médio mensal do agregado familiar não supera o salário mínimo. Os pais estudaram, em média, pouco mais de sete anos. “A escola, felizmente, é mais do que estes números”, diz Rui Serrano.
“A professora também diz que é mãe da turma toda”, atira um aluno, durante o intervalo, metendo-se à conversa com Maria Manuel Passas. A professora ri-se. Como já ali dá aulas há 15 anos, chega a ser “avó” de alguns. “Às vezes precisamos mais de ser pais, avós, tios do que propriamente professores. Fazemos um bocadinho daquilo que os pais não têm capacidade para fazer, ou não sabem ou não querem: o saber estar, saber ouvir, saber viver em sociedade”, vinca a professora de História e Geografia.
Numa escola como esta não se trabalha apenas na sala de aula. “Sou preocupada com os meus alunos e já tem acontecido ter que ir a casa buscar alguns. Há casas óptimas, mas a maioria está muito desorganizada.” Professores e funcionários fazem o mesmo retrato: numa parte significativa das famílias, o pai não está presente. É comum que a mãe saia de casa de manhã cedo para trabalhar, só volte à noite. “Os miúdos ficam em autogestão”, ilustra Maria Manuel. Há outras famílias desocupadas, em buscas prolongadas por emprego, com rupturas familiares, vícios e problemas com a justiça.
São problemas que desaguam na escola. No primeiro período, em 14 turmas, registaram-se 302 participações disciplinares em sala de aula (menos 34 do que um ano antes). Em cerca de 65 dias de aulas, são mais de quatro participações diárias. E há a alimentação: cerca de 50 crianças tomam o pequeno-almoço, oferecido pela escola, no primeiro intervalo da manhã. Não há funcionários suficientes para que isso aconteça mais cedo, diz o director.
“Faltou-lhes qualquer coisa”
Miguel Pinto tem 20 anos e uma imagem completamente formada sobre aquilo que é a sua vida e sobre o que podia ter sido se a mãe, mas também a tia e o avô que a ajudaram a criá-lo, não o tivessem incentivado a estudar. Está no segundo ano do curso de Física na Universidade de Lisboa. Terminou o 12.º com uma média próxima dos 17 valores (numa escala que vai até 20). Antes disso, debateu-se com o facto de ter ambições que nenhum amigo do bairro tinha. “Passei pela fase da parvalheira, também queria ser o engraçadinho. E isso fez com que no secundário tivesse de correr atrás do prejuízo.”
Chegou a ser o rapaz mais novo da turma, o único que não reprovara. Lembra-se de estranhar as agressões, os caixotes do lixo queimados na escola básica – “Não era todos os dias, mas acontecia.” Lembra-se de, no 5.º ano, a “escola ser mesmo muito má”. “Enquanto numa outra existia uma heterogeneidade de pessoas, com mais e com menos recursos, com diferentes culturas, aqui era, em certa medida, tudo igual.” O lado bom disso era a forma como todos se ajudavam.
Quando voltou há um ano à escola do Bairro Padre Cruz para ser mentor de uma aluna, encontrou professores mais motivados, alunos mais acompanhados. Espera que hoje “realmente se puxe pelas capacidades” deles. Há cinco anos, ele tinha a família a desempenhar esse papel, os amigos não. “Conheci pessoas fantásticas, excelentes. Simplesmente faltou-lhes oportunidade, faltou-lhes qualquer coisa.”
Exames iguais para todos
Para os professores novos, a escola “pode ser um choque”. Inês Caria, de Português e História, chegou em Setembro. Alguns amigos questionaram porque é que ela não recusava a colocação. “Se partimos do princípio que isto vai ser mau, dificilmente vamos conseguir fazer alguma coisa”, respondia. “É um desafio todos os dias. Temos de moldar as expectativas. Temos de atender às necessidades de regras, de afecto. Só depois podemos cumprir o programa.” Duas alunas com quem se cruza no corredor agarram-se ao seu pescoço num abraço. “Eles precisam de ser ouvidos. Necessitam de dizer ‘Eu estou aqui’.”
Português é uma disciplina desafiante. “Não estão habituados a construir uma frase do início ao fim, a ler, a escrever. É preciso contrariar isso. E acabam por conseguir”, sublinha a professora. “Eles são óptimos em projectos e têm recebido prémios em questões ambientais.” Nas aulas, atalham-se alguns truques: intercalar aulas expositivas com práticas; dividir ao meio as turmas de Inglês e Português para dar atenção a dúvidas individuais e trabalhar a oralidade e a leitura.
“Claro que há dias em que apetece ir embora. Mas depois penso: estes miúdos já têm tantas portas fechadas, vou ser eu mais uma?”
E como é levar estes alunos a exame, uma prova nacional, igual para todos? Em 110 provas de Matemática e Português, os alunos do 9.º ano tiveram no ano passado uma média de 1,94, numa escala de um a cinco – a média das notas internas, atribuídas pelos professores, também não chegava à positiva (2,67). “Dentro da capacidade que eles têm, temos que ir ao essencial. Não podemos ser tão ambiciosos como são os exames”, diz Inês Caria. Dá aulas desde 2004 e espera não ter de concorrer no final do ano. “Sinto que tenho aqui uma missão e que um ano não é suficiente. Tenho vontade de ficar.”
Educar os pais
É preciso saber chegar a estes alunos e ter um olhar atento. Cristina Santos, psicóloga educacional do agrupamento, tenta estar presente e actuar quando as dificuldades surgem. Anda nos intervalos, senta-se na sala dos alunos. Não há a figura da consulta e raramente está no gabinete. Alguns alunos, diz, nem têm a percepção de que ela é psicóloga.
“Há um mecanismo de defesa, que os leva a desconfiar quando alguém se tenta aproximar, mas também há miúdos muito imaturos a nível emocional. Alguns, com 10 ou 11 anos apenas fazem a distinção entre o mau e o bom. ‘Foi injusto, foi cruel?’ Têm dificuldade em identificar o que estão a sentir”, aponta. Alguns conhecem pouco mais do que a freguesia de Carnide, a Pontinha ou Odivelas. A baixa de Lisboa, a 13 quilómetros e meia hora de metro, parece-lhes distante.
Ao longo de dez anos, a psicóloga foi conquistando proximidade e confiança. Hoje é uma cara conhecida. “Muitas famílias são muito impermeáveis, é difícil entrar.” É por isso tão importante, diz, que a escola tenha um corpo docente e uma equipa de apoio psicossocial estável. “Nestes meios é fundamental que eles não estejam sempre a perder a referência da escola.” Este ano, segundo a direcção, 60% dos professores são novos, vindos de vários pontos do país.
A par disso, a perda de alunos na última década fez também encolher o Gabinete de Apoio à Família, onde Cristina trabalha. Já foram oito, entre psicólogos, técnicos de dramatização e de animação sociocultural. “Dinamizavam a sala de alunos e tornavam esta escola mais aprazível. Tínhamos um grupo de teatro, outro de música.” Organizavam colónias de férias e pequenas viagens de estudo. “Agora estamos desfalcados.” Além da psicóloga, há para todo o agrupamento uma técnica de serviço social e um psicólogo clínico a meio tempo, mais duas técnicas para as duas turmas de PIEF – Programa Integrado de Educação e Formação.
A Padre Cruz mudou noutros aspectos ao longo dos anos. Há 15 anos, recorda Maria Manuel Passas, era frequente os pais irromperem escola dentro para resolver problemas, muitas vezes, com os filhos. Foi preciso impor limites. “Acho que os miúdos também estão mais calmos.”
Rui Serrano, director desde Setembro (até então era subdirector), diz que “a escola esteve muito fechada ao mundo.” Não comunicava com os pais dos alunos, “a não ser para dar más notícias”; não tinha por hábito reunir com eles no início do ano. Durante alguns anos, acrescenta, também “não houve grandes opções de percurso” para os jovens que não tinham aproveitamento no ensino regular. Alguns chumbavam consecutivamente, vários chegavam aos 18 anos ainda no 3.º ciclo. “A escola tem que arranjar percursos alternativos, na hora certa, de forma preventiva.”
A associação de pais tenta colmatar falhas nesse sentido. Está a criar uma rádio escolar e a contratar uma psicóloga para trabalhar directamente com as famílias. “Há um despejo das crianças na escola, não a entrega dos meninos à educação”, sente o presidente Paulo Carrilho. “Há que educar os pais. Senão é uma bola de neve.”