A identidade em construção

Na obra de Mónica de Miranda, a disciplina da fotografia sempre conteve em si a possibilidade de arquivar a memória. Esta antológica ultrapassa largamente esse propósito.

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O que a obra de Monica de Miranda tem de notável é a capacidade de nos prender na nossa condição de voyeurs de uma arqueologia da imagem, que é pessoal e política, que é global e local, que é africana e europeia,O que a obra de Monica de Miranda tem de notável é a capacidade de nos prender na nossa condição de voyeurs de uma arqueologia da imagem, que é pessoal e política, que é global e local, que é africana e europeia ANTÓNIO JORGE SILVA,ANTÓNIO JORGE SILVA
O que a obra de Monica de Miranda tem de  notável é a capacidade de nos prender na nossa condição de voyeurs de uma arqueologia da imagem, que é pessoal e política, que é global e local, que é africana e europeia
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O que a obra de Monica de Miranda tem de notável é a capacidade de nos prender na nossa condição de voyeurs de uma arqueologia da imagem, que é pessoal e política, que é global e local, que é africana e europeia ANTÓNIO JORGE SILVA

Pode-se começar a visita a esta exposição antológica de Mónica de Miranda, artista nascida no Porto em 1976 e que tem alternado vida e carreira entre Lisboa, Luanda e Londres, por duas grandes peças longitudinais (Island) que se dispõem em frente uma da outra no piso inferior da galeria. Representam imagens de uma ilha idílica, vista do mar, que são aparentemente idênticas. Num dos topos destas obras, um ecrã vai mostrando um vídeo filmado numa casa particular cheia desses objectos que se guardam como suporte das memórias pessoais: fotografias, bibelots, móveis. Há um contraste nítido entre o exterior das primeiras fotografias, que a artista segmenta em diferentes componentes, e o interior da terceira; ou entre aquilo que é indubitavelmente paisagem, e o que se insere no género da natureza morta, aqui muito mais literal do que o habitual: percebemos pelos trajes e pelas poses de algumas das fotografias filmadas que se trata de gente desaparecida há muito tempo.

Um outro começo possível desta visita está nas imagens de gémeas que pontuam diferentes séries aqui apresentadas, que cobrem um arco temporal entre 2014 e 2017. Tomemos como exemplo a série Cinema Karl Marx: em fotografias dispostas lado a lado, duas raparigas sentadas olham-nos da plateia de um antigo cinema em ruínas. Um dos espaldares das cadeiras caiu, e essa diagonal quebra a uniformidade não apenas dos objectos dispostos em fiadas, mas também dos rostos das personagens: tudo é um duplo ou um múltiplo de uma unidade, sem verdadeiramente o ser.

Esta duplicidade, que as imagens habitadas por personagens nestas séries revelam de um modo tão evidente, também se materializa nas ruínas de construções modernistas em Angola (como o hotel Panorama da série do mesmo nome), em imagens de piscinas ou de vivendas (Vivenda geminada). Podemos entendê-la como um dos princípios de base da arquitectura modernista, que implantava autoritariamente, em qualquer latitude e sem olhar às tradições locais, um mesmo modelo habitacional. De certo modo, esta repetição, que podemos ainda hoje constatar na Cité Radieuse de Le Corbusier e na sua extensíssima descendência, que culmina na monotonia dos edifícios de habitação social que enxameiam o Ocidente, é também apanágio da fotografia, que depende da reprodutibilidade (ela que é também, na sua essência, reprodução da imagem visível) para ser.

A força que estas ruínas denotam, vistas em planos frontais, simétricos, sem qualquer concessão à expressividade, relaciona-se de modo quase imediato com os vestígios da presença colonial portuguesa em África. Mónica de Miranda fala de um pós-arquivo, e nesta expressão podemos ler uma mise en abîme de uma ideia de coleccionar — recolher, inventariar, mostrar — que sobre si própria se debruça e reflecte. O que a sua obra tem de verdadeiramente notável é esta capacidade de nos prender na nossa condição de voyeurs de uma arqueologia da imagem, que é pessoal e política, que é global e local, que é africana e europeia. A artista baralha as pistas e, ao contrário do que sucede noutras obras de artistas portugueses que incidem sobre o colonialismo, sem nunca afirmar frontalmente uma tese programática que poderia supostamente desenvolver na sua obra — mas ancorando-a numa falha, numa ferida, numa dor que por vezes se duplica no próprio processo de construção de cada peça: ora recortando cada imagem em fragmentos que se justapõem — e cada corte é uma violência feita à unicidade da imagem; ora rasgando-a, costurando-a e cobrindo-a com cera quente, como sucede nas paisagens de florestas luxuriantes das séries Linetrap, Lost Paradise e Like a Candle in the Wind.

A curadora, Filipa Oliveira, fala-nos desta ferida a propósito do título escolhido para a exposição, Geografia Dormente. Explica que a dormência é uma patologia ligada à compressão de um nervo e à consequente ausência de sensibilidade. Dormente, contudo, partilha a etimologia de dormir e adormecer, e podemos imaginar que esta dupla condição das imagens que vemos — estruturas quase mortas, destruídas, sem capacidade de “olhar”, e contudo tornadas visíveis através da câmara da artista — também se duplica no duplo, no múltiplo, na serialidade modernista. Nunca explicar tudo o que vemos é o grande trunfo deste trabalho, que decididamente alia a convocação e o desenho do espaço à intervenção que Miranda nele faz. Ou seja, que trata, afinal, da construção de uma identidade num espaço multiforme.

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