Da mulher da estepe aos zombies austríacos: o Festival de Berlim começou sem exotismos
Mais do que Öndög, um simpático filme vindo da China, são o brasileiro Querência e o “corpo estranho” Die Kinder der Toten que ficam do primeiro dia de festival.
É fácil arquivar alguns filmes no campo das curiosidades exóticas para público de festival ver, e ainda mais fácil esquecermo-nos deles com os anos. Alguém se lembra do (contudo muito simpático) Tuya’s Marriage, com o qual o chinês Wang Quan’an venceu o Urso de Ouro em Berlim em 2006, história de casamento arranjado na Mongólia interior? O mesmo vale para Apart Together, com o qual o mesmo Wang venceu melhor argumento em 2010, e que o tornou numa das “mascotes” deste certame berlinense que parece não existir fora da sua peculiar “bolha”. Öndög, com que agora regressa à competição, pode não mudar essa “etiqueta”, mas seria injusto passar ao lado de um filme que rejeita exotismos gratuitos para desenhar um retrato de mulher solteira que sabe o que quer da vida.
Rodando em planos longos que se vão progressivamente aproximando das personagens enquanto nos dão uma dimensão precisa da grandeza desta natureza árdua, Wang começa por uma história policial inerte. Uma mulher surge morta na estepe, a tal distância da civilização que alguém tem de ficar para trás a tomar conta do corpo durante a noite, e a policia pede à tal mulher solteira – uma criadora de gado conhecida por Dinossáuria, único ser humano no espaço de cem quilómetros – que ajude o polícia a quem coube a missão de vigilância.
A partir daqui, Öndög transforma-se gradualmente numa passagem à idade adulta (o polícia só tem 18 anos) e num olhar sobre a coexistência entre o mundo moderno e as tradições da Mongólia. Tudo não passa de um pretexto para desenhar com elegância o retrato da Dinossáuria, e do modo como esta mulher sozinha (mas não solitária) sobrevive, assumindo-se como dona do seu próprio destino num mundo de homens. É – pecha da competição de Berlim – um filme meramente simpático, mas que também não deve ser descartado como apenas mais um exotismo da Berlinale.
Tal como seria injusto ver o “arranque” da comitiva brasileira à Berlinale 2019, Querência, seleccionado para a paralela Forum, apenas como olhar exótico sobre a comunidade das vaquejadas e dos rodeos rurais. O regresso de Helvécio Marins Jr. à longa-metragem, oito anos depois do injustamente pouco visto Girimunho, confirma todo o bem que achávamos acerca da capacidade do cineasta mineiro para mergulhar o espectador a fundo num universo que lhe é estranho – para o que muito contribui o impressionante design de som hiper-realista do colectivo O Grivo.
É inevitável pensar no Boi Néon, de Gabriel Mascaro, devido ao meio em que tudo se passa – o “herói” de Querência, Marcelo, é um vaqueiro que, na sequência de um roubo de gado em que foi obrigado a participar, contempla passar para trás do microfone como mestre-de-cerimónias de rodeos. Mas Marins é um cineasta da sugestão, da intuição; Querência é uma quase “fantasmagoria” sobre “o outro Brasil”, sem exotismos nem condescendências, com uma vontade quase antropológica de o conhecer e de o compreender, entre a ficção e o documentário. Não é filme que se revele à primeira (já Girimunho não era), é antes uma invocação espectral de um tempo e de um espaço.
A Europa, hoje?
E invocação é palavra que também se aplica ao corpo estranho que é Die Kinder der Toten (Forum): a estreia no cinema da dupla formada pela americana Kelly Cooper e pelo checo Pavol Laska, mentores da companhia teatral nova-iorquina Nature Theatre of Oklahoma, adaptando o romance homónimo da Prémio Nobel austríaca Elfriede Jelinek – com produção de Ulrich Seidl, o grande entomologista social da Áustria moderna. Nascido de uma encomenda do festival de arte contemporânea Steirischer Herbst e filmado com um elenco inteiramente amador e local, Die Kinder der Toten é uma descida aos infernos da psique austríaca em forma (aqui, sim) de fantasmagoria surreal e grotesca, onde passado e presente colidem em Super 8 e todos os lugares-comuns “turísticos” da Áustria são desintegrados e desmantelados de modo escarninho, absurdista e cruel, bem à nossa frente.
Uma relação entre (outra vez) uma mãe e uma filha que não se suportam uma à outra está no centro de uma constelação de episódios interligados sobre o peso do passado e a ignorância do presente, onde um guarda-florestal chora o mundo que passou, refugiados sírios rechaçados pelos locais são confundidos com zombies aos olhos de turistas holandeses e a filha se torna a guardiã de um portal para o outro mundo.
Haverá zombies, sim, mas também os tradicionais Schnitzel, um banquete árabe e lutas de trutas antes de o mundo acabar (ou talvez não) com uma praga de flamingos cor-de-rosa. Die Kinder der Toten pode ser sobre a Áustria, mas não é a Áustria um exemplo possível da Europa, hoje? E se Berlim é o “festival do tema”, o filme de Kelly Cooper e Pavol Laska é uma maneira inspiradamente desvairada de dar a volta ao caderno de encargos. Pena que não esteja a concurso.