"Tem que haver alguma correcção nos valores” do apoio público ao sector social
O presidente da União das Misericórdias Portuguesas, Manuel Lemos, espera a presença do primeiro-ministro no congresso da instituição, que começa esta quinta-feira, para lhe pedir “mais atenção ao sector social”. Avisa que Portugal é o país com mais idosos pobres na UE e que os apoios do Estado ainda estão “abaixo dos 30%”.
Há 22 anos, recorda Manuel Lemos, quando António Guterres era primeiro-ministro, “havia mais ou menos a ideia de que a comparticipação do Estado pagava à volta de 50%”. Mas na verdade, não é assim e a situação está a provocar “problemas de sustentabilidade nas misericórdias”. Manuel Lemos diz que é preciso resolver este problema até porque depois da crise as comparticipações “caíram de uma maneira brutal”. O “Estado não nos está a ajudar a nós. Está a ajudar as pessoas”, salienta.
Qual é o maior desafio que as misericórdias enfrentam neste momento?
O principal desafio que nós temos é responder aos problemas das pessoas com qualidade e com dignidade, em todas as áreas. Na saúde, na segurança social, na área da deficiência, da assistência. É responder aos problemas das pessoas e ao mesmo tempo assegurarmos a nossa sustentabilidade. Só podemos sobreviver no tempo se sobrevivermos... Há muita gente que todos os dias recorre às nossas instituições - ou está nas nossas instituições, nas diferentes valências - e algumas vezes temos a angústia de querer ajudar mais e não chegarmos lá.
Neste momento têm mais gente a recorrer por problemas ligados ao envelhecimento ou à pobreza?
Dada a nossa natureza e a forma como nos organizamos nos últimos 40 anos as pessoas que recorrem mais são pessoas com problemas ligados ao envelhecimento. Embora, naturalmente, as pessoas idosas mais pobres são as que mais recorrem. Há aqui uma sobreposição. Nos números da União Europeia, Portugal é o país da Europa que tem mais idosos pobres.
Falou dos problemas da sustentabilidade das misericórdias. Até que ponto foram feitos investimentos nos últimos anos para dar resposta a problemas sociais e que levaram a que hoje as misericórdias possam ter mais dificuldades de sustentabilidade?
A questão é outra. Quando fixámos o pacto de cooperação para a solidariedade - faz agora 22 anos, era o Governo do engenheiro António Guterres - havia mais ou menos a ideia de que a comparticipação do Estado pagava à volta de 50% no caso das respostas sociais e um bocadinho mais no caso das deficiências, em que podia ir até aos 65%. Julgo que nunca chegámos aos 50%. Mas nestes anos, fruto da crise, o Estado não acompanhou como devia estas comparticipações e elas caíram de uma maneira brutal. Por exemplo, num grande centro urbano, como a Grande Lisboa e o Grande Porto, um idoso custa às misericórdias à volta de 1300 euros. E o Estado paga com 358 euros. Estamos francamente abaixo dos 30%. E isso causa-nos problemas óbvios de sustentabilidade, a dois níveis. Vai muito para além da sustentabilidade económica e tem a ver com salários mais justos, mais qualidade nos equipamentos, inovação. O problema aqui nunca é o investimento - há um ou outro caso de investimentos megalómanos mas isso não conta para o que eu estou a dizer - é quase sempre a questão da manutenção.
Há misericórdias em risco neste momento?
Há misericórdias completamente na borda d'água.
São muitas?
Algumas. As mais pequeninas, que têm mais dificuldade em fazer engenharia financeira, que têm pouca margem de respostas, essas têm obviamente mais dificuldades do que uma misericórdia maior.
E que outras possibilidades de financiamento as misericórdias têm para além das ajudas do Estado e da comparticipação dos utentes?
Peço desculpa por corrigir, mas o Estado não nos está a ajudar a nós. Está a ajudar as pessoas. Se num lar de 60 pessoas, num determinado mês tivermos 65, o Estado só comparticipa 55. Não comparticipa as 60. Mas isso nós não discutimos, achamos que é o caminho certo. Mas não nos ajuda, comparticipa as pessoas. E depois há a comparticipação das pessoas - mas como sabe as pessoas idosas vivem das suas reformas. E as reformas em Portugal são baixíssimas. É o tal problema dos idosos pobres de que eu falava. E há as famílias, mas sabemos que hoje em dia não é fácil estar a comparticipar o cuidado do nosso pai, da nossa mãe, o nosso tio, o nosso parente idoso... O que é que nos tem valido? O rigor, que é um dos lemas do congresso, tem a ver com a nossa preocupação em gerirmos bem, com cautela, com os bens que temos e com aquilo que a chamamos economia social, que é o que nós fazemos.
Até que ponto as misericórdias estão dependentes do poder político?
Claro que nós podíamos sempre denunciar o pacto de cooperação, vamos supor. E então deixávamos de estar dependentes do poder político e de qualquer outro poder. Passávamos a depender de nós próprios. E a verdade é que nós não conseguíamos apoiar o mesmo número de pessoas que apoiamos. Quem é que sofria? Eram as pessoas. E como é que o Estado respondia àquelas centenas, milhares de pessoas? Era construindo as suas próprias respostas? O Estado sabe muito bem que o pode fazer, só que isso lhe vai custar muito mais...
Sente apoio suficiente da parte do Estado?
Nós todos percebemos que o Estado tem vivido estes anos com enorme dificuldade. E como nós temos feito sempre mais com menos, o Estado naturalmente vai aproveitando isso. Eu acho que chegamos a um momento em que, de facto, para utilizar um termo que tem sido usado, tem que haver alguma reversão. Tem que haver aqui alguma correcção nestes valores. Não quer dizer que tenhamos que subir em dois anos ou três para os 50% ou para os 47 ou 48, mas o Estado tem que fazer um esforço. Quando falamos de políticas sociais é disto que estamos a falar. Às vezes há quem diga "as misericórdias são muito ricas". Há aqui dois equívocos. Um deles é que as pessoas acham que as misericórdias são todas como a Misericórdia de Lisboa que tem recursos muito próprios e ainda bem que os tem.
E que é um caso particular, não funciona como as restantes misericórdias...
É uma misericórdia, mas é um serviço público do Estado português. E depois há aquela ideia que temos um património cultural que vale muito dinheiro. Mas esse património é dos portugueses, Os azulejos da igreja A, B, C ou D não são para vender, não se traduzem em tesouraria. Nós criámos dentro da União das Misericórdias um departamento de turismo precisamente para rentabilizarmos o nosso património cultural e até criar emprego à volta disso. E isso também nos ajuda a aumentar as receitas próprias que no caso das misericórdias nunca é para distribuir pelos accionistas - porque não há accionistas - mas é para gastar com as pessoas.
Quando fala em reversão, diz que não é até aos 48 ou 50 nos próximos dois anos, mas tem uma meta?
O problema da meta é o problema da qualidade e da dignidade dos cidadãos de que cuidamos e dos que empregamos.
Quantas pessoas empregam as misericórdias no seu todo?
Empregos directos à volta de 100 mil, 120 mil pessoas. Mas os empregos indirectos são mais ou menos outros tantos. E os empregos indirectos são praticamente directos... Quando adjudicamos uma cozinha, a cozinheira e a auxiliar é da empresa mas está ali todos os dias. Quem vive em grandes cidades não percebe isto muito bem, mas quem vive em aldeias ou terras pequenas percebe melhor o que é a vida ali, o que é que a misericórdia local representa para a autarquia. Nós somos habitualmente o primeiro, o segundo ou o terceiro empregador, o que faz de nós os principais agentes de desenvolvimento do território. Hoje as pessoas vivem mais anos. É muito bom. Mas depois temos os problemas das fragilidades e das demências, como o tristemente famoso Alzheimer é o caso mais evidente. Como é que se cuida destas pessoas? Em que condições? A rede de cuidados continuados foi estruturante para cuidar melhor de muitas pessoas.
Mas lembro-me de que ainda era D. José Policarpo patriarca de Lisboa fez uma carta às misericórdias do patriarcado a pedir-lhes "cuidado com os investimentos nos cuidados continuados porque não há garantia de que venha a existir financiamento". Hoje as misericórdias consideram sustentável a aposta nos cuidados continuados?
A resposta é fundamental. Nas unidades de cuidados continuados vem muita gente dos hospitais que teria que estar nos hospitais, o que custava quatro, cinco, seis vezes mais, diariamente. É uma boa resposta e em boa hora foi lançada. Como em tudo, 13 anos depois, talvez valesse a pena olhar para ela. Treze anos depois, o perfil das pessoas que estão nos cuidados continuados já não é em muitos casos aquele que está na lei. Nessa matéria, teremos todos que conversar com seriedade sobre qual é o custo razoável de uma entidade dessas para ela não ter prejuízo. Como é que se cuidam das pessoas se não existirem essas unidades? Nós não temos lucros, mas há um lucro social que não é de maneira nenhuma despiciendo.
Como é que correu a entrada das misericórdias no capital do Montepio?
Correu bem. Nós não entrámos para salvar o Montepio. Ouvi o Dr. Mário Centeno dizer que o Montepio era um banco com os mesmos problemas dos outros bancos e se fosse necessário o Estado entrava. O que nós quisemos fazer foi uma coisa diferente: foi marcar a necessidade, neste contexto em que vivemos, de termos um banco da economia social. Um banco da economia social podia-nos ajudar no tal plano da sustentabilidade que já falámos. Era importante termos um banco que percebesse bem quais eram as nossas questões. E um banco da economia social que não tenha que responder às exigências do mercado e dos stakeholders, que não olha para os nossos investimentos como um negócio, que percebe o tal lucro social que estamos a ter, faz todo o sentido.
E um banco desses tem viabilidade?
Em toda a Europa tem. Ainda recentemente a União Europeia assinou um documento sobre a importância da economia social. Na Suécia, 15% do Produto Interno Bruto é economia social. Nós estamos aqui em 2% a 3% do PIB.
E o que vai pedir ao primeiro-ministro neste congresso?
Se o senhor primeiro-ministro sempre confirmar a sua ida, o que lhe vou pedir é que olhe ainda com mais atenção para o sector social, que é um parceiro leal do Estado. Não estou a falar só das misericórdias. Os nossos objectivos são os mesmos e nós sabemos fazer bem algumas coisas que, custando mais barato aos portugueses, permitem a qualquer primeiro-ministro apertar menos com os impostos.
Quer que permita também apertar menos com os impostos os agentes da economia social?
Nós não nos queixamos do sistema fiscal. Não é por aí. O nosso objectivo é pensarmos em conjunto como podemos cuidar melhor dos portugueses que precisam de ser cuidados no quadro que o Estado definir. Quem dita as regras é o Estado.
Ao longo destes últimos anos como tem sido a relação com o poder político? Está a ser mais fácil agora? Foi mais difícil com o governo anterior?
Com os governos as nossas relações têm sido, regra geral, muito fáceis. Claro que as pessoas têm idiossincrasias, que nós respeitamos. Mas devo dizer que, na maioria esmagadora das vezes, a relação tem corrido muito bem, com os limites que tem. Quando não têm dinheiro dizem que não têm dinheiro...
Não é uma questão de ideologia, é uma questão de dinheiro disponível?
Não é bem isso. Não sou tão contabilista quanto isso! É óbvio que um olhar formado mais à direita ou mais à esquerda condiciona o pensamento sobre as questões sociais.
É mais fácil para si lidar com o olhar mais à direita ou mais à esquerda?
Para mim é exactamente igual. Olhe, toda a gente sabe que o dr. Vieira da Silva é um homem de esquerda. Eu já lhe disse a ele que uma das pessoas com quem eu mais aprendi em questões sociais foi com ele! Não tenho problema nenhum em dizer isso, é verdade!