“Defesa de papel” ou “exército europeu”
No papel, as coisas avançaram um pouco. Na prática, não se muda uma realidade tão complexa como a capacidade militar e a doutrina de defesa da União Europeia de um dia para o outro.
“Sopa de letras”, como lhe chama The Economist? “Defesa de papel”, como escrevem muitos analistas? É este o estado da defesa europeia? Em boa medida, poder-se-ia dizer que sim. Foram feitos avanços políticos e institucionais nos últimos anos. Foi criada uma “cooperação estruturada permanente” para a política de segurança e defesa em Novembro de 2017, utilizando um mecanismo já previsto no Tratado de Lisboa de 2007, que dá pelo nome de PESCO (na sigla inglesa). Com uma divergência à nascença: a França queria uma cooperação restrita aos países com uma capacidade militar efectiva e uma doutrina comum; a Alemanha queria alargá-la ao maior número possível de países.
Foi esta última versão que prevaleceu (além dos neutrais, ninguém quis ficar de fora), com a adesão de 23 países. Para contrariar esta diluição, Macron quis dar vida a uma “Iniciativa de Intervenção Europeia”, da qual fazem parte 11 países quase todos ocidentais – incluindo o Reino Unido, apesar da iminência do "Brexit", e os países de tradição mais atlantista, como Portugal, Holanda, Dinamarca, mas também a Alemanha. A iniciativa visa a constituição de uma força de intervenção rápida para responder a crises e envolve “o planeamento conjunto em cenários de crise que podem ameaçar potencialmente a segurança europeia.” Foi criada fora da PESCO para poder contar com o Reino Unido e não depender da vontade de um número muito elevado de países. Também é verdade que a Europa retirou as devidas lições da guerra nos Balcãs para constituir uma força de intervenção civil destinada à reconstrução dos Estados na fase de pós-conflito que hoje funciona com grande eficácia. A participação da União Europeia em várias missões de manutenção da paz do Mali à República Centro-Africana, passando ainda pelo Kosovo ou pelo combate à pirataria na costa da Somália, independentemente da NATO, é uma realidade. Mas no que toca à “hard security”, ou seja, à capacidade de projectar forças militares para fora das suas fronteiras ou no que respeita à sua própria defesa colectiva, a Europa continua a ser um “anão” ou, por outras palavras, a depender dos Estados Unidos através da Aliança Atlântica.
Sentimento de urgência
Há, no entanto, hoje um novo sentimento de urgência cujas causas são fáceis de explicar. De um lado, a súbita mudança da política externa norte-americana com a chegada de Donald Trump à Casa Branca obrigou os europeus a pensar se poderiam continuar a depender do aliado americano para garantir a sua segurança. Trump rompeu com a política dos EUA desde o fim da II Guerra, que garantia a defesa europeia através da NATO e do Artigo 5.º do Tratado de Washington – ou, pelo menos, anunciou por palavras, mesmo que ainda não por actos. Deixou de apoiar a integração europeia que foi, desde a primeira hora, também um objectivo americano. E se, até agora, os estragos provocados na NATO são mais psicológicos do que materiais e a aliança transatlântica continua a funcionar normalmente, a verdade é que os aliados europeus deixaram de ter a sua segurança dada como garantida. Ainda durante a campanha eleitoral, Trump declarou a NATO “obsoleta”.
Nas duas cimeiras da Aliança em que Trump participou não apenas exigiu uma contribuição financeira muito mais significativa dos aliados europeus para a sua própria defesa, acusando-os de viver à custa dos EUA, como não se inibiu de fazer várias ameaças muito pouco veladas à intocabilidade do Artigo 5.º que garante a defesa colectiva. Até recentemente, o seu secretário da Defesa, o general James Mattis, serviu de garantia aos aliados de que, no essencial, a mais poderosa aliança militar do mundo não tinha alterado no fundamental a sua natureza. A presença militar americana na Europa manteve-se. Mattis demitiu-se no final do ano passado em aberta discordância com as decisões do Presidente. A demissão foi mais um sinal de pânico nas capitais europeias. Não foi Trump quem primeiro levantou a questão da necessidade de os aliados europeus gastarem mais com a sua própria defesa. Os anteriores presidentes americanos fizeram-no desde o fim da Guerra Fria. Foi estabelecido um compromisso entre os aliados segundo o qual os respectivos orçamentos de Defesa deverão atingir os 2% do PIB em 2024. Têm vindo a aumentar progressivamente. Desde 2015, os membros europeus da Aliança aumentaram em 50 mil milhões de dólares a sua despesa com a defesa. Mas a Europa está ainda muito longe de conseguir o mínimo de autonomia estratégica em relação ao seu grande aliado transatlântico.
A ameaça a Leste
O segundo alerta veio de Moscovo, quando Vladimir Putin transformou a Rússia, de parceiro da União Europeia e da NATO em ameaça directa à segurança europeia, adoptando uma política de expansionismo agressivo que mantém uma constante tensão na fronteira Leste da Europa. A invasão da Geórgia em 2008 foi um primeiro sinal. A anexação da Crimeia e a ocupação da parte Leste da Ucrânia, em 2014, eliminaram quaisquer dúvidas a que os europeus ainda se pudessem agarrar.
A desordem crescente que reina no Médio Oriente e no Norte de África, aumentando a instabilidade nas fronteiras Sul e Sudeste da Europa, são outro desafio à à segurança europeia, que o afastamento americano apenas ajudará a agravar.
A segurança e defesa subiram para o topo das prioridades políticas europeias. Não há cimeira entre a chanceler alemã e o Presidente francês que não sublinhe a urgência desta dimensão da integração europeia. No papel, as coisas avançaram um pouco. Na prática, não se muda uma realidade tão complexa como a capacidade militar e a doutrina de defesa de um dia para o outro. Em particular na Alemanha, de onde pode vir alguma diferença dada a sua dimensão económica e a sua crescente influência política, tudo se passa muito devagar pelas razões conhecidas. A França tenta puxar o carro. A saída do Reino Unido é a maior machadada nas pretensões europeias neste domínio. Estes dois países são as únicas duas potências europeias com uma capacidade militar assinalável e com uma doutrina sobre a sua utilização, além de uma capacidade nuclear autónoma. Funcionariam como o núcleo a partir do qual seria possível construir uma capacidade militar europeia com o mínimo de credibilidade. Deixará de ser assim, mesmo que a cooperação militar entre os dois países possa manter-se em alguns domínios e através da NATO. A única conclusão possível, reconhecida hoje em praticamente todas as capitais europeias, é que os EUA são insubstituíveis e sê-lo-ão por muito mais tempo num mundo cada vez mais adverso.
A indústria de defesa
Além disso, nem tudo corre bem numa outra dimensão fundamental: a indústria de defesa, que seria uma das formas de compatibilizar o armamento entre os vários países europeus, condição fundamental para poderem agir mais facilmente em comum. Os países que integram a PESCO comprometeram-se nesse sentido, numa área que é fundamental para as tecnologias de ponta e em que os EUA detêm um incomensurável avanço. A realidade comprova que a tendência ainda não é essa. Há dois meses, a Bélgica renovou a sua frota de aviões de combate optando pela compra de F-35 aos EUA, em detrimento do “Eurofigther” (consórcio entre o Reino Unido, a Alemanha e a Espanha) ou do “Rafale” francês. Uma recente notícia, citando um think-tank especializado dava conta de que não é caso único. Para além da França e da Suécia, que utilizam apenas os aviões de combate que fabricam (“Rafale” e “Gripen”), a maioria dos países ocidentais prefere uma combinação entre os F-35 americanos e os que eles próprios produzem. É o que faz a Alemanha, com os "Eurofighters", ou o Reino Unido, que produz a sua própria versão ("Typhon"). Os países do Norte – Noruega, Bélgica, Holanda, mas também Portugal – preferem os F-16 e os F-35 da Lockheed Martin americana, como a maioria dos países da Europa Central e de Leste. É apenas um exemplo do longo caminho ainda a percorrer num domínio fundamental. Outro exemplo que fala por si: os EUA têm apenas um carro de combate, enquanto os europeus usam 17.
Nem tudo corre mal
No que toca à aliança transatlântica, as coisas não parecem tão negativas quando se passa da retórica de Trump para a realidade dos factos. Os EUA e a NATO (com 23 países envolvidos) mantêm uma vasta operação de patrulhamento da fronteira dos Bálticos com a Rússia, dissuadindo qualquer tentação de Putin em relação a países que são membros da Aliança e que se sentem particularmente vulneráveis. Os Estados Unidos aumentaram mesmo o seu financiamento específico para esta operação. Apesar da manifesta “sintonia” entre o Presidente americano e o seu homólogo russo, a NATO não desguarneceu, pelo contrário, a sua fronteira Leste. De resto, o reforço da dimensão militar da União Europeia não corre hoje o risco, que a paralisou durante demasiado tempo, de lesar a coesão da Aliança Atlântica – é mesmo o único caminho para a sua eventual consolidação, retirando argumentos à actual Administração norte-americana.
Estamos perante um novo fôlego ou uma falsa partida? Alguém notará a diferença? É preciso dar tempo ao tempo, mesmo que o tempo comece a escassear. Por enquanto uma coisa é certa: não vale a pena desconfiar dos méritos de um “exército europeu”. Ainda estamos muito, muito longe dessa realidade.