Papa não hesita em criticar guerra no Iémen em visita histórica aos Emirados
Ida do Papa à região é uma estreia quando os Emirados querem mostrar tolerância. Francisco quebrou a sua própria regra e criticou uma guerra em que Abu Dhabi participa.
O Papa Francisco fez história ao ser o primeiro Sumo Pontífice a visitar a Península Arábica, berço do islão, mas em Abu Dhabi não deixou de abordar um tópico incómodo para o anfitrião: a guerra no Iémen.
As consequências “estão à vista”, disse Francisco, depois de um encontro com líderes dos Emirados Árabes Unidos nesta segunda-feira. “A guerra não pode criar nada a não ser miséria, as armas não podem trazer nada a não ser morte…”, declarou Francisco.
“Penso em particular no Iémen, na Síria, no Iraque e na Líbia”, acrescentou no discurso, apesar de o país em que falava ter um importante papel nesta guerra, ao lado da Arábia Saudita, contra os rebeldes houthis, xiitas, apoiados pelo Irão. “Vamo-nos empenhar contra a lógica do poder armado”, apelou Francisco.
A guerra no Iémen provocou dezenas de milhares de mortos e uma das maiores crises humanitárias do mundo. A ONU tenta conseguir um cessar-fogo para o porto de Hodeidah, onde têm tido lugar algumas das batalhas mais ferozes, para que bens de primeira necessidade possam de novo chegar ao país.
O Papa pediu ainda aos países do Golfo para darem direitos de cidadania a minorias religiosas.
As palavras foram “excepcionalmente honestas para um Papa que tem como regra geral não criticar qualquer país que o recebe”, comenta um artigo do New York Times sobre a visita. Em geral, o Papa fala antes de aterrar no país, ou espera até chegar ao próximo.
O Papa estava nos Emirados (onde o ano de 2019 será “o ano da tolerância”) a convite do Governo, para participar numa iniciativa de diálogo inter-religioso com o Grande Imã da Al-Azhar, a maior instituição de ensino do islão sunita, o xeque Ahmed el-Tayeb.
Este foi o quinto encontro entre o Papa e o Grande Imã, e a Al-Azhar, notando a relação “profundamente fraterna” entre os dois, contava até que esta incluía recíprocas mensagens de parabéns nos aniversários.
Este nível de relações entre católicos e muçulmanos (apesar da Santa Sé não ter paralelo no mundo muçulmano, que não tem uma estrutura centralizada) seria impensável há alguns anos.
A iniciativa de diálogo inter-religioso incluiu ainda representantes de outras religiões: líderes judeus, hindus, budistas e ainda outros cristãos.
O Papa pediu a todos os líderes religiosos para resistir à “tentação recorrente” de julgar o outro como inimigo, e insistiu que “não se pode justificar qualquer violência em nome da religião”.
No encontro, pelo seu lado, o xeque Ahmed el-Tayeb dirigiu-se aos muçulmanos no Médio Oriente, dizendo-lhes que os cristãos “são nossos parceiros na nossa nação”. De seguida, falou aos cristãos na região: “Vocês são parte desta nação. São cidadãos, não são uma minoria, têm plenos direitos e plena responsabilidade.”
Os Emirados Árabes Unidos são dos poucos países da região em que o número de cristãos tem aumentado (em contraste com as quedas marcadas na Síria ou, antes, Iraque). A subida, que também tem sido registada na Arábia Saudita ou Qatar, deve-se sobretudo à imigração de trabalhadores de países como as Filipinas ou a Índia. Estima-se que haja um milhão de cristãos nos Emirados, entre os nove milhões de pessoas que lá vivem.
Nos Emirados os cristãos têm liberdade religiosa (sobretudo comparando com outros da região), mas apenas até certo ponto – podem rezar em complexos com licenças (não fora deles), não podem fazer proselitismo, e os muçulmanos não se podem converter. Na Arábia Saudita, as restrições são muito maiores e as igrejas são proibidas. Ainda assim, a ida do Papa ao vizinho fez o diário saudita em inglês Arab News especular sobre uma possível visita futura de Francisco à Arábia Saudita.
Como ponto final da visita em Abu Dhabi que todos sublinham ser histórica, o Papa celebrará esta terça-feira uma missa no estádio da cidade. Lá esperam-se cerca de 135 mil pessoas (o mesmo número, nota o diário Irish Times, que assistiu no ano passado à missa em Dublin, na tradicionalmente católica Irlanda).