Eduardo Barroso: "Pode haver perversões graves” na gestão privada de hospitais públicos
Em entrevista ao PÚBLICO, o médico-cirurgião Eduardo Barroso lamenta que nas parcerias público-privadas só se discuta o dinheiro e afirma que é preciso analisar outros aspectos. “Tenho muitas dúvidas sobre as razões que levam alguns grandes grupos de saúde a interessarem-se por ter gestão privada de hospitais públicos. Não é só pelo dinheiro e mais não digo."
O médico Eduardo Barroso deixou o Serviço Nacional de Saúde (SNS) em Novembro, quando ainda lhe faltavam quase três meses para fazer os 70 anos. Foi homenageado na passada terça-feira pelo trabalho que desenvolveu na área do transplante hepático. Ao PÚBLICO fala dos desafios que enfrentou e de como o humanismo na relação com o doente é fundamental. Lamenta que nas parcerias público-privadas (PPP) só se discuta o dinheiro e afirma que é preciso analisar outros aspectos.
Foram mais de 45 anos no serviço público e agora está na Fundação Champalimaud. Como foi esta transição?
Há cerca de seis ou sete anos que tinha um part-time com a Fundação Champalimaud na área da cirurgia do fígado, vias biliares e do pâncreas, com alguns dos meus colaboradores. Quando se aproximou a hora da reforma, fui desafiado — e eu estava interessado — a trabalhar na fundação depois da reforma no público. Felizmente as coisas compuseram-se. A fundação quis e eu também quero. Acho que física e intelectualmente ainda estou válido para ajudar.
Em cirurgia também?
Em cirurgia, na consulta. A cirurgia é muito mais do que operar. Não quer dizer que não opere alguns doentes, mas eu não sou o futuro. A Fundação Champalimaud não foi a única alternativa que tive para a pós-reforma. Era a que me agradava mais. É uma instituição nova, onde há muitos investigadores. Temos mais de 360 investigadores em áreas cruciais, neurociências, cancro. Essa investigação translacional é muito importante para o progresso.
É aí que o SNS peca?
O SNS é sobretudo virado para as necessidades assistenciais da população, com muito pouca investigação e a pouca que há é investigação clínica. Há muito pouca investigação translacional, isto é, de ciências básicas com cirurgia. O [Hospital] Santa Maria com o Instituto de Medicina Molecular conseguiu fazer isso. No Centro Hospitalar Lisboa Central, com a ligação à faculdade, também estamos a tentar melhorar esse aspecto. Mas é uma lacuna muito grande.
São passos de bebé.
São passos de bebé. Sabe uma coisa? Quando vim para os hospitais e imaginei o Centro Hepato-Bilio-Pancreático e de Transplantação no Curry Cabral… Fizeram esta coisa muito bonita de pôr uma placa com uma frase que terei dito num doutoramento honoris causa que me deram na Universidade de Aveiro. Diz: ‘Sem ousadia no pensamento e na acção não há progresso.' E em baixo tem outra placa onde diz que o centro tem o meu nome. Fiquei comovido.
Está a emocionar-se outra vez.
Sim, estou um bocado emocionado. Ver uma placa, um pensamento meu e uma ideia… De facto a ideia é minha, mas depois a obra é de todos. Houve um núcleo muito importante de pessoas que estão comigo desde essa altura e que disseram: "Eduardo, vamos contigo".
Quem foram as pessoas que mais o marcaram? E como foi a ideia de trazer uma técnica que não existia em Portugal?
Está a referir-se ao transplante. Estamos a conversar aqui, na Fundação, e foi daqui que partiram os barcos e era aqui a zona dos velhos do Restelo que diziam que nunca íamos chegar à Índia, nem a África. Assim foi comigo em relação ao transplante. Quando disse que ia aprender a fazer um transplante, tirando o Dr. João Pena, praticamente todos os meus colegas mais velhos (pessoas da mais elevada craveira e que eu admiro ainda hoje), disseram: ‘Eduardo, nunca hás-de fazer um transplante hepático em Portugal porque não temos condições para o fazer.' E foi o que se viu. Fui aprender e depois juntei-me ao Dr. Pena. Ele foi fundamental.
Sentiu, e a sua equipa, o subfinanciamento do SNS?
Sentimos a falta de enfermeiros, também a falta de camas. A restrição das camas de internamento foi uma política erradíssima. Das coisas mais horríveis que tive de fazer na altura foi ir a uma sala de espera em que havia 14 doentes para serem operados e dizer que só tínhamos cama para quatro ou para cinco. Aconteceu muitas vezes.
Mas mentir-lhe-ia se não dissesse que somos [na unidade Hepato-Bilio-Pancreático e de Transplantação do Curry Cabral] uma ilha de privilégio. O nosso serviço, as nossas enfermarias, os nossos quartos não são luxuosos mas são do melhor que há no serviço público em termos de qualidade de instalações. Os nossos blocos operatórios estão ao nível dos melhores do que conheci no mundo. Deixo um aparelho de radiologia de intervenção que foi inaugurado há dois dias que é único. Não há na Península Ibérica nenhum aparelho como aquele.
No seu livro Sobreviver diz-se preocupado com o interesse de grupos privados de saúde na gestão de hospitais públicos.
Isso preocupa-me muito. O Amadora-Sintra foi o primeiro exemplo de um hospital público com gestão privada. Não fui para lá para aprender a fazer coisas para depois utilizar na privada.
É preciso estarmos muito atentos às razões que levam certos grandes grupos privados a candidatarem-se à gestão de hospitais públicos. Ouvi uma entrevista da ministra em que o entrevistador se referia às PPP de dois hospitais e só falavam de dinheiro. Fiquei impressionado. Então só discutimos o problema das PPP em função dos gastos e do dinheiro?
Não é essa a base que tem servido para a existência ou não das PPP?
Mas é errado. A PPP tem de provar que é mais eficiente e mais barata e depois tem de se perceber se a qualidade da medicina que se pratica também é igual à de alguns hospitais públicos. É fácil ser igual em patologias que exigem pouca tecnologia, poucos recursos humanos, onde não tem de se ter os melhores. Tenho muitas dúvidas sobre as razões que levam alguns grandes grupos de saúde a interessarem-se por ter gestão privada de hospitais públicos. Não é só pelo dinheiro e mais não digo.
Acha que é para formar profissionais e depois os levar...
Mais não digo. Façam uma análise correcta disso, porque também não é justo pôr todos no mesmo saco. Eu estarei disposto — não é nesta entrevista — a dizer por que é que acho que pode haver perversões muito graves desta promiscuidade. Podem dizer que não vi essa promiscuidade quando estive no Amadora-Sintra. Não vi.
Então o que o leva a acreditar tanto que ela existe?
Não é altura agora para falarmos disso. Acho muito engraçado quando vejo alguns fazer disto uma luta partidária, quando vejo alguns partidos a dizer 'o hospital X é bestial porque é o que gasta menos'. Vamos ver com calma, analisar outros aspectos que não têm só a ver com o dinheiro. Vamos saber se os profissionais estão contentes, que condições têm, como é que trabalham e como é a relação de alguns com outras situações do grupo a que pertencem. No dia em que quiserem fazer um debate sobre isso, eu estou disposto. Mas tem de ser frente a frente para dizer algumas coisas que podem espantar as pessoas.
Recebeu doentes no Curry Cabral que tivessem sido transferidos quando acabou o planfond do seguro?
Recebi. Tive um episódio desses pouco antes de sair. Não é legítimo dizer a um doente que tem 300 euros ou 400 euros de reforma, que sabemos que não tem nem ADSE, seguro ou convenção, que não tem esse dinheiro para pagar, que tem de ser naquele sítio porque ali é melhor. Temos obrigação de dizer: ‘Tem a noção que isto vai ter um custo?’
Mas às vezes as pessoas não têm bem a noção do que custa a saúde.
Têm a noção porque podem pedir um orçamento. 'Vão-se os anéis, ficam os dedos' é uma coisa que me arrepia. Nunca operei um doente na privada que me tivesse dito qualquer coisa parecida com ‘não se preocupe que eu faço o sacrifício’ ou ‘vendo um carro ou uma casa’. Nunca na minha vida. Quando formamos técnicos e cirurgiões, também temos de lhes formar o carácter.
Falta humanismo na medicina, no sentido de saber o nome do doente e não ser o doente da cama 15?
Aprendi isso com o meu chefe. Quando entram jovens [internos], sabem que não podem dizer ‘tenho ali um problema com o doente da cama 15’. É obrigado a tratar pelos nomes e é proibido tratar os doentes por tu. É preciso tratar os doentes com respeito. Era proibido também dizer o doentinho. Estes pormenores fazem toda a diferença.
Um médico também tem de saber quando pedir ajuda?
Com certeza e não tem de ter problema nenhum em saber pedir ajuda. Ultimamente, alguns que me chamavam faziam-no mais por amizade, pela minha auto-estima. É disso que me orgulho. Sob o ponto de vista técnico já não precisavam de mim. Sob o ponto de vista das discussões multidisciplinares, podem ser autónomos, mas eu penso que ainda lhes dava um toque. Só faço isto há 35 anos, não acha que a minha experiência... Sou inteligente, estou informado, leio.
O que anda a ler?
Antes tinha de ler um pouco de tudo. Agora só leio tudo o que sai sobre pâncreas e fígado, sobretudo em áreas não cirúrgicas. Temos aqui na Fundação vários projectos de investigação. Há uma semana fui falar com duas jovens que estão a fazer um trabalho de investigação ao nível molecular no tratamento do cancro do pâncreas. Pedi que me explicassem o que queriam com aquilo, foi muito útil.
Custa ver-se envelhecer?
Acho que custa a todas as pessoas. Talvez não custe aos 40. Não sei quando comecei a ter noção da finitude. Mas é uma grande pedrada. Acho que todos a tivemos. Tenho amigos da área cirúrgica com quem falei sobre isto. Com o João Lobo Antunes [já falecido], o Daniel Sampaio, grandes amigos que se reformaram.
Até que ponto o enfarte o marcou?
Tenho bisavô, um avô, um pai e um irmão que morreram de enfarte. Eu já tive um enfarte. Fui um fumador inveterado até há três anos e meio, com uma vida muito sedentária, comi de forma sempre muito pouco correcta. Isso junto à parte genética, não me dá grandes hipóteses, mas todos nós vamos ter de morrer. Neste momento, a minha obrigação é, enquanto estiver lúcido e capaz, ajudar a dar qualidade e mais tempo de vida a muitos doentes que nos procuram. Sabe muito bem ainda estar ligado. E não o faço com falsas modéstias, acho que ainda posso ser útil.