Greve dos enfermeiros é ilegal para o primeiro-ministro, mas juristas dividem-se

António Costa criticou de forma extremamente dura as greves "cirúrgicas" dos enfermeiros que estão a provocar o adiamento de centenas de cirugias. Disse que são "selvagens" e "absolutamente ilegais". Juristas dividem-se e sindicato fala em "coacção".

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Paulo Pimenta

Os juristas estão divididos mas o primeiro-ministro António Costa não teve dúvidas em afirmar esta quinta-feira, de forma peremptória, que as “greves cirúrgicas” dos enfermeiros são “absolutamente ilegais”. Serão? Provar a eventual ilicitude do pouco convencional protesto ou a ilegalidade do seu invulgar financiamento é o cerne da questão, numa altura em que centenas de cirurgias estão a ser adiadas nos sete centros hospitalares em que a nova paralisação foi convocada até ao final deste mês.

António Costa veio apoiar a ministra da Saúde e não poupou nos adjectivos, caracterizando o protesto como "selvagem" e atentatório dos direitos dos doentes. O "exercício legítimo do direito à greve" não deve ser confundido "com práticas que não são greves cirúrgicas, mas sim greves selvagens, que visam simplesmente atentar" contra "a função do SNS e que são absolutamente ilegais", declarou. Recusando comentar este caso em concreto, o Presidente da República preferiu fazer um apelo genérico a que se pese o custo social das greves, sobretudo quando são muito longas.

Mudar o conceito do direito à greve?

Quanto à legalidade ou ilegalidade das greves cirúrgicas, os juristas estão divididos. Especialista em Direito do Trabalho, Fausto Leite sublinha que nunca viu “uma greve como esta” e defende que o Governo pode avançar para a requisição civil. Porquê? Porque este protesto é "desproporcionado", nomeadamente pela sua duração – no primeiro período a greve durou 40 dias e esta segunda fase vai prolongar-se até ao final deste mês – e também pela sua “gravidade”. A legislação prevê esta possibilidade “em circunstâncias particularmente graves e para assegurar o regular funcionamento de serviços essenciais e de interesse público”, lembra.

Frisando que não lhe parece provável que "um tribunal deste país diga que esta greve é ilegal", Paulo Veiga e Moura considera que o protesto é legal e que "não cabe aos tribunais substituir-se aos sindicatos". "Se um tribunal considerasse esta greve ilegal, estava a abrir caminho para matar todas as greves no futuro", enfatiza. 

Lembrando que o direito à greve é um direito quase absoluto, desde que se cumpram os serviços mínimos, o jurista defende que o que se deve perguntar é se este direito deve ser limitado. “Obviamente, temos que mudar o conceito do direito à greve, que é de 1974”, observa. Mas, enquanto isso não acontece, o que pode ser questionado é a legalidade da forma como a greve está a ser financiada – através de uma plataforma de crowdfunding, que para esta segunda fase do protesto conseguiu mais de 420 mil euros. Se esta forma de financiamento se generalizar, "podemos ter greves eternas", antecipa, notando que isto é "que poderá ser ilegal".

Quem não tem dúvidas de que a paralisação respeita a lei são os dirigentes do Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (Sindepor), uma das duas estruturas sindicais que convocaram a greve. "Ao contrário do que se anda para aí a dizer, esta greve não é ilegal, não é selvagem. São tudo formas de coacção sobre os enfermeiros. Isso, sim, é ilegal. Esta greve está devidamente controlada por um documento emitido pelo tribunal arbitral e que nós pretendemos que seja cumprido", disse à TSF Delfim Sousa, do Sindepor.

Governo não apresentou contra-proposta

Mas, além de pôr em causa a legalidade do protesto, António Costa acentuou que quer que seja avaliada a ilicitude do "exercício de funções sindicais por instituições que legalmente estão expressamente proibidas de terem qualquer actividade sindical". Referia-se indirectamente ao envolvimento da Ordem dos Enfermeiros (OE), liderada por Ana Rita Cavaco.

"Se o primeiro-ministro tem dúvidas sobre estas matérias, que faça uma queixa ao Ministério Público", reage a bastonária da OE. “Não daria menos trabalho negociar com os enfermeiros em vez de fazer esta fita toda?", pergunta Ana Rita Cavaco, lamentando que o Governo não tenha apresentado uma contra-proposta aos sindicatos nas negociações que terminaram na semana passada.

Considerando que a greve é "profundamente injusta", o presidente da Associação dos Administradores Hospitalares, Alexandre Lourenço, volta a fazer um apelo ao Ministério da Saúde para que divulgue diariamente as situações "de doentes graves cujas cirurgias estão a ser adiadas". "No conjunto dos milhares de doentes cujas operações foram canceladas, há uma percentagem que tinha uma janela de tempo [para ser operado] que foi ultrapassada", lamenta. 

Novo parecer da PGR

O Ministério da Saúde já anunciou que está a avaliar juridicamente a hipótese de recorrer à requisição civil ou pedir um novo parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (PGR). Esta sexta-feira a PGR adiantou que este conselho está já a analisar “um pedido complementar de parecer”, que foi recentemente “distribuído ao relator”, sem adiantar mais detalhes. 

No primeiro parecer, o Conselho Consultivo da PGR não viu ilicitude na convocatória da greve, mas considerava já, segundo a resposta enviada ao PÚBLICO, que caso se constate que “é cada um dos trabalhadores enfermeiros quem decide o dia, a hora e duração do período de greve, numa gestão individual desta forma de luta, deve-se concluir que estamos perante uma greve self-service, que corresponde a um movimento de protesto ilícito".

Isso não está em causa, retorque Ana Rita Cavaco, sublinhando que vai continuar a apoiar as greves dos profissionais e que isso “não é ilegal”. O estatuto da Ordem estipula "a defesa da dignidade dos profissionais".

Esta greve, recorda, "nasce da saturação dos enfermeiros", que aguardam há muitos anos pelo descongelamento da progressão das carreiras, o aumento do salário-base e a redução da idade da reforma. “Com 21 anos de profissão, um enfermeiro ganha 980 euros líquidos", exemplifica.

A primeira e a segunda “greve cirúrgica” são suportadas com dinheiro recolhido de uma forma pouco convencional – uma plataforma de crowdfundig – que serve para pagar aos enfermeiros que faltam ao trabalho nos blocos operatórios dos centros hospitalares afectados. Os profissionais que faltam recebem 42 euros por dia.

No primeiro período da greve foram adiadas cerca de 7500 operações. Destas, 45% foram entretanto realizadas, e outras 45% estão programadas até Março, tendo os custos sido estimados em cerca de 12 milhões de euros.

Esta segunda greve estende-se até ao final de Fevereiro e foi convocada de novo pelo Sindepor e pela Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros (ASPE). Abrange sete instituições: os centros hospitalares São João e o do Porto, o de Entre Douro e Vouga e o de Gaia/Espinho, o de Tondela/Viseu, e os hospitais de Braga e o Garcia de Orta (Almada). Mas, a partir do próximo dia 8, vai ser alargada a mais três centros hospitalares: o de Coimbra, o de Lisboa Norte e o de Setúbal.

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