Os arquitectos portugueses têm medo da palavra “património”?
Numa área sob pressão, uma exposição no Museu de Arte Popular quer mostrar algumas intervenções recentes assinadas por arquitectos conhecidos. No lançamento do catálogo, houve quem defendesse que se fala demasiado de beleza.
Qual é a ligação entre a prática da arquitectura portuguesa e o debate patrimonial nos últimos 50 anos? Esta e várias outras questões foram elencadas pelo arquitecto Jorge Figueira na sessão de lançamento do catálogo da exposição Físicas do Património Português. Arquitectura e Memória, que estará no Museu de Arte Popular, em Lisboa, até ao final de Setembro.
A sessão desdobrou-se numa mesa-redonda intitulada Património ou Arquitectura?, uma “provocação” lançada por Jorge Figueira (também crítico de arquitectura do PÚBLICO) para sublinhar que a relação entre estas duas culturas não está isenta de polémicas, pois como esclarece o comissário logo na abertura do catálogo, respondendo em parte à pergunta lançada na mesa-redonda, “a prática da arquitectura em Portugal está intimamente ligada ao património”, sendo um dos factores constitutivos da sua identidade. Mas, paradoxalmente, nota o comissário, para os arquitectos portugueses “património” é “uma expressão algo pesada, não-moderna, quando o objectivo é fazer projecto, levantar paredes”. Se “o tema é tabu”, ele é “normalmente deixado a especialistas”.
Quando falam de património os arquitectos preferem, então, o termo menos comprometedor “pré-existência”, que tudo pode incluir, desde as rochas da Casa de Chá da Boa Nova e da Piscina das Marés, ambas em Leça da Palmeira, apropriadas por Álvaro Siza em meados do século passado, até às paredes antigas do Convento de Santa Maria do Bouro, que serviram a Eduardo Souto de Moura para reconverter o edifício em pousada em 1989, no mesmo ano em que Siza apresentava o plano de recuperação para o Chiado depois do incêndio.
Na cronologia que vemos nas paredes da primeira das duas salas da exposição, que começa no século XIX com Alexandre Herculano a denunciar o abandono dos monumentos e apelando à acção, temos que chegar a 1920 para ver aparecer a antepassada da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), a entidade que corresponde hoje à Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), organizadora da exposição e o braço-armado do Ministério da Cultura para o património. Jorge Figueira identifica alguns momentos fundadores capazes de explicarem a relação actual algo enviesada dos arquitectos portugueses com o património. “Com o advento do Estado Novo a DGEMN torna-se um instrumento fundamental de propaganda do regime e de exaltação patriótica”, afirma o comissário, com uma intervenção nos monumentos que efabula um Portugal arcaico e austero. O apogeu desta arquitectura produzida com uma memória patrimonialista é a Exposição do Mundo Português, em 1940, altura em que é erguido o Museu de Arte Popular onde se apresenta esta exposição.
“Depois há o momento contra-propagandístico, em que uma geração mais nova de arquitectos modernos, como Francisco Keil do Amaral ou Fernando Távora, faz o Inquérito à Arquitectura Popular. Já não estão resignados à casa portuguesa, nem à arquitectura monumental, mas interessa-lhes uma intervenção contemporânea com uma cultura antropológica. É esta geração que passa a valorizar as pré-existências.” As operações do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), criado depois da revolução de 25 de Abril e em que trabalham arquitectos como Siza, ampliam esta experiência de inquérito junto das populações, fazendo com que o projecto seja participado pelas comunidades que o vão habitar.
“O SAAL é anti tábua rasa, não deita tudo abaixo para começar de novo. É famosa a relação que Siza estabeleceu com os muros do Bairro de São Vítor no Porto. Depois, mais tarde, há ainda o programa das pousadas, onde a plasticidade da arquitectura portuguesa encontra muitas formas de dialogar com as pré-existências. Por isso, há quatro momentos muito diferentes, que passam por algumas batalhas ideológicas, que ainda ecoam hoje”, diz-nos Jorge Figueira numa visita à exposição antes do lançamento.
Uma herança que dá aos arquitectos portugueses uma “naturalidade na forma como se relacionam com a questão do património, sem teorização ou culpa, como um terreno de prática”, escreve Jorge Figueira no catálogo. Essa capacidade plástica de fazer conviver antigo e novo, de “entrar dentro do edifício sem pedir muita licença”, tem provocado algumas críticas, algumas delas entre os convidados para a mesa-redonda que contou com os arquitectos Gonçalo Byrne, João Pedro Falcão de Campos, José Aguiar, Paula Araújo da Silva (directora da DGPC), Victor Mestre, Sofia Aleixo e ainda o historiador do património Jorge Custódio.
A exposição mostra 12 projectos em que está espelhada esta relação mais orgânica, mais líquida com o património: Convento de Jesus (João Luís Carrilho da Graça), Igreja de São Francisco (Adalberto Dias), Teatro LU.CA (Manuel Graça Dias, Egas José Vieira), Sede do Banco de Portugal (Byrne, Falcão de Campos), Teatro Thalia (Byrne, Patrícia Barbas, Diogo Seixas Lopes), Estufas do Jardim Botânico (João Mendes Ribeiro), Solar Porta dos Figos (António Belém Lima), Igreja e Torre dos Clérigos (João Carlos dos Santos), Reservatório da Pasteleira (Alexandre Alves Costa, Sergio Fernandez), Casa Museu de Vilar (Paulo Providência), Museu Abade Pedrosa (Siza, Souto de Moura) e Biblioteca Municipal de Caminha (Nuno Brandão Costa).
1989, o ano chave nas últimas décadas
Ao lado dos 12 projectos líquidos, encontramos seis grandes maquetas em madeira, que mostram monumentos nacionais como o Cabo Espichel, a Alta de Coimbra ou o promontório de Sagres, que, nas físicas do património evocadas no título da exposição, estão num estado da matéria “sólido”, defende Jorge Figueira: “Há sítios tão míticos, despojados e difíceis, que são ilhas cuja intervenção está votada ao fracasso. São sítios que mostram que nem tudo são facilidades, nem tudo se pode transformar num pavilhão de congressos ou pousadas. Há lugares com um carácter tão forte que não os imaginamos sem serem eles próprios, que não admitem um reúso.”
Se voltarmos ao ano de 1989, ao plano de Siza para o Chiado e ao projecto de Souto de Moura para a Pousada do Bouro, Jorge Figueira explica-nos que o primeiro está na fronteira entre o líquido e o sólido e o segundo é nitidamente um exemplo do líquido. “No Chiado é quase impossível intervir, mas o Siza, de modo muito arguto, indo atrás do traçado pombalino, consegue estabelecer uma intervenção com uma certa liquidez. Ele consegue aquilo que é raro: intervém em estruturas com muito carácter, realinhando-as e introduzindo contemporaneidade.”
Na opinião do comissário, o Chiado é patrimonial sem ousar dizê-lo: “É o traçado pombalino, é essa contenção, mas é também a descoberta da cidade, dos interstícios dos edifícios.” Já no Bouro, vemos uma estética da ruína: “Há uma famosa discussão entre o Távora e o Souto de Moura, em que este aconselha a que sejam repostos os telhados como existiam. O Souto de Moura recusa-se e vai pela ideia de estarmos perante qualquer coisa incompleta. Essa imagem de uma extrema competência do ponto de vista da reabilitação, mas de um extremo ascetismo do ponto de vista da imagem, é completamente avassaladora e cria uma escola muito forte que perdura até hoje. O Chiado volta ao que estava acrescentando, o Bouro volta a uma coisa que nunca esteve.” O comissário da exposição, que teve a assistência de Carlos Machado e Moura, diz que esse tour de force transforma aquele património numa obra “souto-mouriana”. “É a plasticidade a impor-se sem ninguém poder acusar a obra de ser pouco rigorosa ou de aldrabar. O Souto de Moura tem essa capacidade de ser muito rigoroso e depois poder efabular. É a ordem do estético, de uma linguagem arquitectónica, que se impõe.”
O ano de 1989, que podemos considerar chave nas últimas décadas, porque é o arranque das encomendas patrimonialistas do Estado no pós-25 de Abril – “não há reabilitação urbana sem se pensar no Chiado, nem recuperação conventual sem se pensar no Bouro” —, não esteve em discussão na mesa-redonda, mas Gonçalo Byrne defendeu que o arquitecto trabalha dentro de um tempo curto com os valores da contemporaneidade. “Um edifício são fragmentos de contemporaneidades sucessivas. O Museu Machado de Castro [um dos seus projectos de reabilitação] é o desfilar de um espólio arquitectónico”, afirmou Byrne, acrescentando que aos seus projectos, muitas vezes feitos em co-autoria com outros arquitectos, também reconhece uma co-autoria com os historiadores ou arqueólogos.
João Pedro Falcão de Campos explicou que procura manter os seus projectos em aberto durante muito tempo. “Gosto de estar disponível para poder acolher um espectro largo de contributos”, mas a verdade, lembrou, “é que não podemos deixar todos os estratos às várias cotas e a certa altura é preciso desenhar [o projecto].”
Património e memória
Jorge Figueira já tinha introduzido várias outras questões, subsidiárias da primeira, lembrando que a exposição dava o ponto de vista da arquitectura a olhar para o património. A plasticidade das intervenções, muitas vezes celebrada, pode ser prejudicial perante bens de alto valor patrimonial? Uma visão mais contida de intervenção no património é realista? Há intervenções que não estão a ser tuteladas verdadeiramente, algo que nos escapa nos últimos anos de grande voracidade reabilitadora?
José Aguiar, especialista em reabilitação e professor da Faculdade Arquitectura da Universidade de Lisboa, disse que pensamos demasiado na beleza e pouco na “firmitas”, “na importância das materialidades e das compatibilidades”. Depois, elogiando a exposição, lembrou que há outros projectos de reabilitação “notáveis” que não estão no Museu de Arte Popular: “um dos melhores exemplos é o de José Adrião na Rua dos Fanqueiros”, na Baixa de Lisboa. Mas há ainda, acrescenta, o MUDE-Museu do Design e da Moda, de Ricardo Carvalho e Joana Vilhena, antes das actuais alterações; a reabilitação do Centro Histórico de Guimarães; a conservação e restauro da Charola do Convento de Cristo de Tomar; o restauro do Arco da Rua Augusta/Estátua D. José ou os restauros sucessivos do Mosteiro dos Jerónimos, entre outros.
Paula Silva, directora da DGPC, entende que os arquitectos devem ter mais formação na área do património para terem mais conhecimento: “A construção não vai poder continuar indefinidamente. O território não pode inexoravelmente ser consumindo pela construção. Passar a mensagem para o património emblemático não é difícil, mas a cidade normal da habitação corrente exige um respeito pelo edifício.”
Victor Mestre, que é autor da recuperação do Liceu Passos Manuel com Sofia Aleixo, quis mesmo fazer o contraditório da exposição: “Não há uma única maneira de intervir. Há outras pessoas que pensam de maneira diferente e agem com a mesma coerência.” A coerência pode estar em nada fazer, como a dupla de arquitectos decidiu em relação ao Convento dos Capuchos de Alferrara, situado na Arrábida (Setúbal), optando por uma acção que apenas procurou parar a degradação da ruína.
Como explicaram ao PÚBLICO depois da mesa-redonda, quiseram evitar repetir programas que já há por todo o país, dando tempo à sua equipa e ao cliente, a associação dos municípios de Setúbal, para conhecer melhor o edifício e decidir com tempo um programa adequado.
“Na exposição não encontramos o património, central no título da exposição e da cronologia, mas os autores, numa selecção clânica, na senda de mostras anteriores”, afirmaram os dois arquitectos, numa conversa já por e-mail, explicando que são sempre os mesmos arquitectos e os mesmos alinhamentos a aparecerem nas exposições sobre arquitectura e património. “No âmbito da reabilitação do património, não reconhecemos representatividade nas obras seleccionadas, mas apenas correntes do pensamento autoral em arquitectura, ficando excluídas outras visões e conceitos de conservação, restauro e reabilitação do património.”
Quanto à preferência pelo termo pré-existência, Victor Mestre e Sofia Aleixo afirmam que “ela desvincula o arquitecto de uma responsabilidade de transmissão de um legado cultural para um mero entendimento físico do edificado, anulando o carácter histórico e de continuidade que o termo ‘património’ representa.” Por último, continuam, liberta ainda o arquitecto dos deveres éticos, “ignorando a estima pública e a herança de valores socio-culturais que o património lega ao presente para benefício futuro”.
No final desta exposição com projecto expositivo de Pedro Pacheco, ainda podemos ouvir várias entrevistas gravadas em vídeo a arquitectos e historiadores que têm trabalhado a questão do património e da memória: Alexandre Alves Costa, Walter Rossa, Raquel Henriques da Silva, Rui Tavares e Paulo Pereira. Uma das perguntas várias vezes repetida é sobre a questão do turismo, que só aqui é abordada, o estado gasoso desta exposição: o que está a acontecer nas Baixas de Lisboa e do Porto, o “fachadismo” por exemplo, era inevitável? As respostas estão no Museu de Arte Popular, que viu algumas das suas pinturas murais serem recuperadas para a exposição Físicas do Património Português. Arquitectura e Memória.
Artigo alterado a 4 de Fevereiro: acrescenta os projectos de Manuel Graça Dias/Egas José Vieira e de João Mendes Ribeiro que faltavam à lista dos 12 expostos