Russian Doll: Viver, morrer, repetir

Natasha Lyonne é a protagonista e co-criadora da nova série do Netflix em que uma mulher morre no dia em que faz 36 anos e tem de reviver esse aniversário vezes sem conta.

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Nadia faz 36 anos e morre, mas vê-se obrigada a repetir esse dia vezes sem conta Netflix

Nadia olha-se ao espelho da casa de banho. A água está a correr. É a sua festa de 36 anos e está no apartamento nova-iorquino de uma amiga que lhe montou toda uma celebração. Ela, uma misantropa, não está no melhor momento da sua vida e mais um aniversário faz sentir a proximidade da morte. Ao som de Gotta Get Up, canção de Harry Nilsson, sai da casa de banho e a amiga oferece-lhe um charro com cocaína. A noite prossegue até ela morrer. Só que, em vez de ficar morta, volta à casa de partida: outra vez em frente ao espelho da casa de banho da amiga, com a água a correr. E Harry Nilsson a cantar. Nadia está presa. A repetição, inevitavelmente, terá de a fazer mudar de rumo e tornar-se numa pessoa melhor.

Já vimos isto nalgum lado. Por exemplo, em O Feitiço do Tempo, de Harold Ramis, quando o ano era 1993, a canção era I Got You, Babe, do duo Sonny & Cher, e o cenário era, em vez de Nova Iorque, uma pousada em Punxsutawney. Russian Doll (Boneca Russa, em português), a nova série do Netflix cujos oito episódios ficaram disponíveis na plataforma de streaming esta sexta-feira, foi beber a premissa a esse filme, mas é muito mais do que isso.

Russian Doll assenta numa interpretação óptima de Natasha Lyonne, que co-criou a série com a actriz cómica e produtora Amy Poehler, de Parks and Recreation e a dramaturga, argumentista e realizadora Leslye Headland, que fez filmes como Quatro Amigas e um CasamentoSem Compromissos. A actriz assume gostar de escrever histórias em que as personagens estão encarceradas em prisões que elas próprias criaram. Lyonne, hoje mais conhecida como a Nicky de Orange is the New Black, outra série do Netflix, fez-se notar nos anos 1990 em filmes independentes como Toda a Gente Diz que te Amo de Woody Allen ou Slums of Beverly Hills de Tamara Jenkins, passando por But I'm a Cheerleader, de Jamie Babbit, que é aliás uma das três realizadoras da série, a par de Headland e Lyonne. Também apareceu nos dois primeiros American Pie, mas no início dos anos 2000 era presença recorrente nos tablóides por histórias de comportamento errático, drogas e álcool, algo que poderá ter paralelos com a personagem que encarna aqui. 

A série vê-se em menos de quatro horas e, apesar de ser construída com base na repetição, não se perde o interesse. Dura o que tem de durar, com uma conclusão satisfatória. Sem entrar em spoilers, como as bonecas russas que lhe dão o nome, à medida que a história avança vão-se revelando várias camadas de comédia, drama, sátira, terror, ficção científica e mistério. Como num filme de detectives, Nadia vai tentando perceber o que lhe aconteceu.

Em entrevistas, ​a realizadora Leslye Headland tem apontado, como referências para a série, neo-noirs "metafísicos" e "existenciais" como O Imenso Adeus, de Robert Altman e O Grande Leboswki, dos Irmãos Coen; o felliniano All That Jazz: O Espectáculo, de Bob Fosse, donde parece vir uma certa maneira de olhar para o passado, e Ladies and Gentlemen, the Fabulous Stains, o clássico punk feminista de Lou Adler, que foi uma das inspirações do movimento riot grrrl, que terá influenciado as cores da série. Há também referências directas a outros filmes como O Jogo, de David Fincher. Tal como O Feitiço do Tempo, são só referências, porque Russian Doll vale por si própria.

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