Sismógrafo: reinventar a cidade milagrosa
Depois de cinco anos na Praça dos Poveiros, a galeria de arte(s) mora agora na Rua da Alegria. Mas quer prosseguir o projecto original de se abrir ao diálogo intergeracional de artistas e apostar num circuito alternativo às galerias comerciais no Porto.
A montra mostra logo ao que vamos. Do lado esquerdo, um palíndromo de Rita Senra, a artista actualmente em exposição; na porta à direita, um texto do surrealista belga Paul Nougé (1895-1967) – “O interior da vossa cabeça não é esta massa cinzenta e branca que vos disseram, é uma paisagem de fontes e ramos, uma casa de fogo, melhor ainda, a cidade milagrosa que ireis gostar de inventar” –, que é todo um programa de acção para a nova fase da vida da Sismógrafo, uma galeria de arte(s) que, desde o início de Janeiro, tem nova morada, mantendo-se na proximidade da Baixa do Porto.
Depois de cinco anos de história num primeiro andar na Praça dos Poveiros, a Sismógrafo está agora algumas centenas de metros acima, no n.º 416 da Rua da Alegria, frente à ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo). “Tivemos de mudar por causa da nova dinâmica imobiliária na Baixa; o nosso contrato nos Poveiros não foi renovado, os preços tornaram-se agora incomportáveis, e tivemos a sorte de encontrar este espaço aqui, ainda dentro de uma centralidade em que teimamos manter-nos”, explica ao PÚBLICO Óscar Faria, um dos fundadores, em 2013, da associação Salto no Vazio, que no ano a seguir haveria de dar origem à Sismógrafo.
Foram cinco anos de exposições e actividades múltiplas nas duas pequenas salas que a associação alugara nos Poveiros por 350 euros/mês. Agora pagam 500 euros/mês por um espaço único, mas mais amplo... e marcado por uma alcatifa vermelho vivo. “Decidimos manter a alcatifa por causa do custo da remoção, porque depois teríamos de a repor”, diz Óscar Faria, mesmo se sabe que esta cor pode ser tanto “um desafio como uma irritação” para os artistas.
Contra o sistema das galerias
A Salto no Vazio – nome sugestivamente inspirado na performance Le saut dans le vide (1960), do artista francês Yves Klein – foi criada como suporte legal para o projecto Sismógrafo por um colectivo de nove pessoas, que incluía referências históricas da arte, como o escultor Sebastião Resende (n. 1954) e Óscar Faria, ex-jornalista e crítico de arte do PÚBLICO, ao lado de jovens artistas recém-saídos da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP).
“Há cinco anos, quisemos reagir um bocado contra o sistema das galerias, que nos parecia algo violento em termos comerciais, e achávamos que não estava a servir correctamente os interesses dos artistas; acreditámos que poderíamos fazer mais, e diferente, não só para os artistas como para a cidade”, salienta Maria João Macedo, 32 anos, a designer gráfica que preside à associação.
Nessa altura, como agora, Óscar Faria – que recusa a excessiva personalização do projecto no seu nome, relevando tratar-se de um trabalho colectivo – achava que era necessário intervir de uma forma diferente na cena artística portuense. E, tomando de empréstimo a expressão de Paul Nougé, diz: “O nosso objectivo é esta cidade milagrosa que temos de reinventar, e que se está a empobrecer”. “Ao contrário da ideia que nos é transmitida de uma euforia cultural, o Porto está a encolher – basta ver o que o turismo e a especulação imobiliária estão a fazer ao centro”, acrescenta, lembrando o que tem acontecido, por exemplo, às livrarias e aos alfarrabistas, às lojas tradicionais e a estruturas culturais como o Gato Vadio.
Foi em reacção a este estado de coisas que, nos seus primeiros cinco anos de actividade – iniciada a 18 de Janeiro de 2014 com a exposição Self-Service, de Fernando J. Ribeiro –, a Sismógrafo mostrou, sempre com acesso gratuito, uma plêiade de artistas, entre nomes consagrados – o próprio Sebastião Resende, Pedro Calapez, Pedro Morais, Augusto Alves da Silva, Paulo da Costa Domingos… – e outros em início de carreira, entre portugueses e (muitos) estrangeiros.
Ao todo foram meia centena as exposições apresentadas nos Poveiros, num calendário de eventos que incluiu também sessões de leitura, concertos, performances… “Ao longo deste tempo, conseguimos solidificar a estrutura, a equipa foi-se renovando, e temos agora um núcleo de pessoas que está a trabalhar de uma forma mais sólida”, nota Maria João Macedo.
A seu lado, Hernâni Reis Baptista, 32 anos, também artista e membro do quadro da associação, elenca e mostra uma série de cartazes, folhas de sala e edições de pequenos livros-de-artista que foram sendo impressos ao longo desse tempo – de Sebastião Resende a Vasco Barata (uma edição premiada pelo Direcção-Geral do Livros e das Bibliotecas), de Renato Ferrão a Rui Baião –, e que vão passar a integrar a colecção do Museu de Serralves.
Poesia e artes gráficas
Óscar Faria chama também a atenção para a colecção de cartazes desdobráveis, associando arte e poesia, que, no ano passado, teve quatro números, assinados pelas duplas Rui Chafes/Manuel de Freitas, Luís Henriques/Inês Dias, Pedro Calapez/Rosa Maria Martelo e Bruno Zhu/Rui Baião. Um trabalho que vai ter continuidade a partir do novo espaço da Sismógrafo, estando já agendadas edições com José Miguel Silva/Luís Manuel Gaspar; Fernando Brito/Manuel João Vieira; e Paulo da Costa Domingos/Nunes da Rocha.
“O que nos interessa é captar as energias do presente, trazendo aqui toda uma nova geração de artistas” em diálogo intergeracional, refere o crítico e curador, tomando de empréstimo o modo como o filósofo alemão Aby Warburg (1866-1929) se definia a si próprio como “um sismógrafo da alma”, e que esteve, de resto, na origem do nome da galeria.
Depois de ter conquistado, em 2017, um primeiro apoio do programa Criatório, da Câmara Municipal do Porto – “nos três primeiros anos, funcionámos às nossas custas”, lembra Óscar Faria –, a Sismógrafo está a viver, no biénio 2018/19, com a ajuda da Direcção-Geral das Artes (32 mil + 35 mil euros). “Dá para pagar às pessoas e criar algumas condições de trabalho aos artistas”, acrescenta o curador, lamentando, no entanto, “a sensação de precariedade” que esta situação encerra, porque “tudo pode esboroar-se de um momento para o outro”. Mas, enquanto isso não acontece, a Sismógrafo oferece-se como “uma paisagem de fontes e ramos” a tentar reinventar “a cidade milagrosa”.
Palíndromos e prosopopeias
Rita Senra (n. Barcelos, 1993) é a primeira artista convidada na nova galeria. Aí apresenta, até 9 de Fevereiro, uma série de criações a que chamou Lengalenga. São quase duas dezenas de obras, palíndromos e prosopopeias, que, na sua aparente simplicidade – são trabalhos feitos com papel de embrulho e de seda, fita-cola e uma imaginação cheia de cor –, transportam o visitante para o universo da infância e da poesia popular.
“Entendi que o meu trabalho podia estabelecer uma relação com a ideia de lengalenga, uma coisa sempre muito ritmada, até no modo de fazer. É essa ideia de uma coisa que parece fastidiosa, mas, ao mesmo tempo, tem algo de irónico, quase uma matreirice de crianças, como o uso de imagens dos animais e o paralelismos com a nossa sociedade”, diz a jovem artista barcelense ao PÚBLICO a justificar a apropriação do imaginário da lengalenga para falar da vida real e actual, como nesta referência à situação política e social do Brasil: “Se tu visses o que eu vi/ para lá do atlântico./ Era gente com olhos, com braços e folhos./ Gente com tripas e bem saber aos molhos./ Era gente, gente mesmo – mas olha”.
Lengalenga é a segunda exposição individual de Rita Senra, após uma primeira, em 2014, apresentada na Garagem Passos Manuel, quando era ainda estudante na FBAUP. Depois de ter frequentado o programa Erasmus em Praga, República Checa, no ano a seguir, regressou ao Porto onde divide o seu trabalho criativo com a colaboração com a Sismógrafo e o colectivo de acção teatral Confederação, além de part-times dispersos, como ser recepcionista numa guest house e assistente de sala no Teatro São João. “Temos de ter esta elasticidade”, justifica a jovem artista, acreditando que o futuro há-de chegar a qualquer momento.