Ruanda: os últimos objectos das vítimas do genocídio são “retratos póstumos”
2019 marca o 25.º aniversário do genocídio ruandês. O fotógrafo norte-americano Barry Salzman, especializado na temática dos genocídios, desenvolveu a série The Day I Became Another Genocide Victim para homenagear as vítimas e lembrar-nos como a lição que nos foi ensinada continua a cair no esquecimento.
Barry Salzman jamais esquecerá as palavras proferidas por uma sobrevivente do genocídio do Ruanda. “Eu estava por baixo de uma pilha de corpos desmembrados, fingindo estar morta, quando ouvi um dos homicidas dizer ‘Só preciso de mais um para chegar aos 100’.” Esta frase chocou o nova-iorquino ao ponto de principiar The Day I Became Another Genocide Victim, uma série fotográfica que desenvolveu no referido país africano e que, perto do 25.º aniversário do massacre, deseja dedicar a todas as vítimas e sobreviventes.
O norte-americano ficou “assombrado” no dia em que visitou pela primeira vez, acompanhado de um grupo de arqueólogos, uma das 41 valas comuns encontradas em Abril de 2018 na cidade de Kabuga. “Tive uma sensação terrível naquele lugar”, observou, em entrevista ao P3, via Skype. “As roupas… ver as roupas deixou-me muito desconfortável.” Durante dias não conseguiu libertar-se da visão “da enorme quantidade de tecido retalhado” e objectos empilhados sobre ossadas e terra. “Só naquela vala deviam estar entre cinco a seis mil corpos”, descreveu, consternado.
Este não foi o primeiro projecto acerca do tema do genocídio que o fotógrafo realizou ao longo da sua carreira. Muitos o precederam, na realidade. “Quando abordo este tópico, ajo como um fotógrafo de paisagem”, comparou. “Fotografo os sítios onde os genocídios decorreram, ou então o local onde as vítimas foram enterradas. Procuro transmitir o silêncio dos locais, é algo que considero muito significante. Mas desta vez foi diferente.” O grito que esteve soterrado durante 24 anos sacudiu Salzman, que sentiu o dever de regressar e fazer-lhe eco. “Senti urgência em separar os objectos e tratá-los individualmente; cada um deles continha a história de um ser humano.”
No local, enquanto assistia ao processo de recolha das roupas e objectos das vítimas, notou algo inesperado. Quase todas as peças de roupa reconhecíveis como tal eram de criança. As roupas dos adultos não passavam de fragmentos de tecido, sem forma. “Durante o genocídio, os adultos foram, literalmente, cortados em pedaços por homens com machetes”, explicou. “A série contém, desproporcionalmente, roupas e objectos pertencentes a crianças por esse motivo – e não porque eu tivesse preferência por mostrar esse lado da história”, justificou. Salzman quis que os objectos que figuram nas imagens tivessem valor informativo, que levantassem o véu relativamente ao perfil da vítima. Um calção de banho, por exemplo, muito poderá adiantar sobre o dia de quem ali perdeu a vida. Ou um vestido formal. Ou uma mochila. “À medida que as peças eram retiradas, ainda cobertas de terra, dava por mim a imaginar a história de quem as vestia”, confessou.
As fotografias de Barry Salzman são “retratos póstumos” das vítimas de genocídio do Ruanda. É Salzman quem assim as classifica. As ossadas têm pouca expressão, hoje em dia, no que concerne ao reconhecimento das vítimas. Através do ADN dificilmente poderão ser identificadas, uma vez que famílias inteiras perderam a vida em 1994 – não existirá, em muitos casos, amostra comparativa para a identificação. Por outro lado, a quantidade de ossadas que já foram descobertas, e as que ainda estão por descobrir, tornariam a missão de reconhecimento científico, num país ainda subdesenvolvido, numa tarefa homérica. Na opinião do fotógrafo, registar os objectos que as vítimas traziam consigo “humaniza pessoas que, de outro modo, permaneceriam para sempre desumanizadas”. E passa a explicar. “As roupas [das vítimas] são importantes para os sobreviventes. Há descrições de casos de pessoas que, mesmo passados mais de 20 anos, conseguiram identificar familiares através de objectos pessoais e vestuário.”
800 mil perderam a vida em apenas 100 dias, no Ruanda. “É impossível para nós perceber o que é um milhão de mortos”, indaga Salzman. “Mas podemos imaginar a vida do menino que trazia a mochila do cãozinho, que acabou espancado ou desmembrado por um machete. É quase possível conhecê-lo. E ele vivia no centro da sua história de vida no dia em que foi assassinado.”
Com o P3, o fotógrafo partilhou 20 retratos póstumos de vítimas de genocídio, mas The Day I Became a Genocide Victim contém exactamente 100 — em homenagem à mulher que escapou ao soldado que assassinou 99. O último da colecção é de uma campa vazia e serve para lembrar as centenas de milhares de vítimas do genocídio não representadas no projecto.
“Desde o final da Segunda Guerra Mundial, já ocorreram, por todo o mundo, 12 genocídios. Doze vezes repetimos o erro, depois de julgarmos já ter aprendido a lição. Acho que nunca vamos compreender porquê.” Mas Salzman quer compreender e continua à procura de respostas. A sua ascendência familiar, de origem polaca e judia — vítima da operação de extermínio de Hitler —, torna essa procura uma necessidade.