Helena Aguiar, a contadora de histórias sobre a História de Lisboa

Apaixonada pela cidade que a viu nascer, Helena Aguiar criou uma página no Facebook para partilhar histórias e pormenores sobre Lisboa. Quatro anos depois, o "arquivozinho" soma mais de mil publicações e quase 23 mil seguidores.

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Quantas vezes caminhamos pelas ruas sem repararmos nas fachadas que flanqueiam o passeio, sem nos perguntarmos pelas suas histórias e porquês? Helena Aguiar nunca foi assim. Talvez por ter nascido e crescido na Mouraria, “bairro maldito de Lisboa” mas “muito antigo”, Helena sempre andou de olhos colados aos pormenores esculpidos nos edifícios, a querer saber o que eram. Intrigavam-lhe os palácios, “aquelas portas todas do castelo de São Jorge”, a igreja “lá ao lado”, sempre fechada. “Até a junta de freguesia era num sítio muito bonito e eu achava aquilo muito estranho. Como é que uma junta de freguesia podia estar instalada num edifício assim? E eu perguntava em miúda e ninguém sabia”, recorda.

A idade foi avançando e a curiosidade multiplicava as dúvidas sem que conseguisse descobrir as respostas. Até que, numa feira do livro, Helena encontrou em promoção o Dicionário da História de Lisboa, um “monstro enorme”, considerado “a bíblia dos olisipógrafos”. De repente, preenchia o vazio que tantas perguntas tinham deixado durante a infância. Os prédios ganhavam finalmente vida, com muitos enredos, lendas e personagens históricas. Nunca mais parou. Atrás de um livro vinha sempre outro, mais os artigos de jornais e de revistas, guardados em dossiers.

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O "Dicionário da História de Lisboa", considerado “a bíblia dos olisipógrafos" Nuno Ferreira Santos

Foi para dar arrumo a tudo o que tinha acumulado ao longo dos anos que criou a “Conta-me Histórias, Lisboa”. A página no Facebook começou como um “arquivozinho”, seguido por “meia dúzia de amigos e família”. Quatro anos depois, soma mais de mil publicações e quase 23 mil seguidores. O espírito do projecto continua o mesmo: divulgar aquilo que Helena tem aprendido sobre Lisboa, com muitos pormenores que “a maior parte das pessoas não conhece nem sabe onde ir procurar”. Como a história do edifício onde ficava a tal junta de freguesia, do Socorro, entretanto extinta e integrada na freguesia de Santa Maria Maior. Era “o antigo Colégio dos Meninos Órfãos”, fundado por D. Catarina em meados do século XVI para “acolher 30 meninos de rua e dar-lhes formação religiosa para servirem, mais tarde, como missionários além-mar”.

Uma das visitas guiadas que Helena fez naquele primeiro Verão do “Conta-me Histórias, Lisboa” passou por ali. Mas cedo desistiu de organizar passeios. “De repente, o grupo começou a crescer e já andava nas 20 pessoas, tornava-se muito cansativo”, diz para justificar o cancelamento dos percursos com a chegada do Inverno. “Não voltei a fazer mas a qualquer altura posso retomar.” Até porque agora os conhecimentos sobre Lisboa “já começam a ser um bocadinho mais”. E porque, se há coisa que lhe crispa a voz, são guias e turistas. “Deviam pô-los a saber um bocadinho mais de História, porque Lisboa não é só pastéis de Belém e Jerónimos”, critica. “Estamos aqui há 5000 anos e é por mérito próprio, há que mostrar uma certa dignidade.” Lisboa, defende, “não é uma Disneylândia”.

Na Mouraria da infância, onde parecia que todos se chamavam Manuel – “Era muito engraçado porque era o senhor Manuel das bananas, o da mercearia, o sapateiro. Só num dos talhos havia um senhor Onofre”, ri-se –, as portas não se trancavam, o castelo de São Jorge servia de palco às brincadeiras e só quando a vizinha já não dava conta do recado é que se chamava o médico. Agora, “são hostels, compara. “Continua a ser bairro, mas já não há aquela interacção.”

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“A gente abre um buraco no chão para arranjar um cano e encontra coisas romanas, muralhas, esqueletos.” Nuno Ferreira Santos

A atitude dos alfacinhas também mudou nos últimos anos. “Antes as pessoas eram muito simpáticas comigo. Eu batia-lhes à porta a perguntar se me deixavam entrar para ver alguma coisa que eu sabia que lá havia e diziam sempre que sim. Agora já não é assim.” Os pátios estão trancados, os restaurantes apinhados, os lisboetas desconfiados. Aqueles pormenores interessantes mas mais escondidos acabam por ficar apenas para segredo de alguns. “Até porque, às vezes, quanto mais se dá a conhecer, mais azo se dá a que desapareçam”, comenta, ao lembrar-se dos painéis de azulejos que foram sendo retirados de fachadas e nichos ao longo dos anos.

Às vezes, os nomes das personagens ou dos palácios não lhe saem à primeira, mas as histórias sucedem-se, recheadas de pormenores. “Vamos lá ver se me lembro de tudo. Acho que a página já sabe mais do que eu”, ri-se. O entusiasmo nunca desarma. Entre um cigarro e outro, vai desfiando sempre mais um conto, uma particularidade sobre um edifício, o novelo biográfico de uma figura histórica. “Vou-me apaixonando pelos segredos que Lisboa guarda”, resume às tantas. Nisso a cidade não é avarenta: “A gente abre um buraco no chão para arranjar um cano e encontra coisas romanas, muralhas, esqueletos.” Há sempre mais para saber e descobrir. “É interessantíssimo.”

Ultimamente, aquilo que mais a entusiasma são as lendas, os ditos populares e os mistérios sobre a capital. Mas tem de refrear as pesquisas por uns tempos. “Ando muito atarefada com a escola.” Aos 59 anos, Helena frequenta o segundo ano da licenciatura em Pintura, na Faculdade de Belas Artes. O que “queria mesmo” era estudar História, mas o processo de inscrição revelou-se demasiado burocrático. Avançou para pintura, área em que tinha concluído o 12.º ano. “Desde sempre que pintei um bocadinho, mas os afazeres também não deixam.”

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Helena Aguiar voltou à escola: está a tirar Pintura, na Faculdade de Belas Artes, em Lisboa Nuno Ferreira Santos

Quando era mais nova, Helena queria ir estudar para o liceu mas acabou por fazer o curso de comercial – “ainda sou do tempo em que tinha de fazer o que a mãe e o pai mandavam”. Toda a vida trabalhou em contabilidade. Concluiu o ensino secundário à noite mas, “divorciada e com uma filha”, não podia dar-se ao luxo de deixar o emprego para ter aulas durante o dia. “Agora depois de velha deu-me para isto, podia ser para pior”, graceja.

É em frente à Faculdade de Belas Artes que nos sentamos a conversar, antes de as aulas começarem. E sobre o edifício de fachada amarela há “tanto para contar” que Helena tem um dossier repleto com tudo aquilo que tem conseguido encontrar. Era ali o antigo Convento de São Francisco, fundado antes de Lisboa ser capital do país, há mais de 800 anos. O edifício ainda guarda “uma cisterna, única em Lisboa, que se pensa ser uma das poucas coisas que restam do início da construção do convento”. “Com a extinção das ordens religiosas, aqui se juntaram as obras de arte dos outros mosteiros e conventos para não serem saqueados”, conta ainda. Foi esse acervo, acrescenta, que deu origem, em parte, ao Museu Nacional de Arte Antiga.

Por mais que se acumulem os trabalhos da faculdade – e as boas notas, assegura orgulhosa –, Helena confessa que anda “sempre a ler é coisas sobre Lisboa”. Disse-lhe um dia o professor de História de Arte: “Só se ama aquilo que se conhece”. E, para Helena, não há paixão maior do que a cidade onde nasceu.

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