O valor da revolta
A actuação de Joana Mortágua pode ser criticada, já que vivemos numa sociedade democrática e pluralista, mas não pode ser vituperada nos termos obscenos e trogloditas que têm caracterizado muitas das acusações.
1. Nunca fui ao bairro da Jamaica, não conheço na totalidade o circunstancialismo da intervenção policial ali ocorrida há poucos dias, não me sinto habilitado a pronunciar uma opinião devidamente fundada em torno da polémica entretanto criada. Há, porém, uma imagem que se instalou na minha memória: a de uma jovem de origem africana, de idade algo indeterminada, entre o fim da adolescência e o começo da idade adulta, que no final da manifestação levada a cabo no centro de Lisboa, na passada segunda-feira, exprimiu com uma serenidade e seriedade admiráveis o nobre sentimento da revolta no sentido mais “camusiano” do conceito.
Nas suas palavras não havia ira nem qualquer outro propósito para além da intenção de reclamar o respeito pela dignidade humana. Olhando-a na expressividade dos seus gestos límpidos e escutando as suas palavras claras, qualquer consciência minimamente preocupada com o outro sentir-se-ia de imediato compelida a tentar imaginar o dia-a-dia de tantos e tantos habitantes negros dos bairros periféricos de Lisboa.
As suas histórias, que têm vindo a ser profusamente divulgadas nos últimos dias, são quase todas iguais, revelando até que ponto a indignidade humana se pode esconder sob a capa da banalidade. Jovens a quem vedam o acesso a quase tudo, estigmatizados pela herança genética, pelas barreiras culturais, pelas barreiras sociais, por representações culturais fechadas e por uma boa dose de incapacidade política para obviar a tudo isto. É por isso natural e inevitável a revolta. É mesmo a única atitude moralmente possível. Essa revolta, seguindo o pensamento de Albert Camus, é de resto a condição imprescindível para a afirmação do valor da solidariedade entre os seres humanos. Aquele que legitimamente se revolta em nome da dignidade do Homem está a prestar um inolvidável serviço à Humanidade.
A deputada do Bloco de Esquerda Joana Mortágua divulgou um vídeo que aparentemente confirma a tese de uma intervenção excessiva da PSP nos acontecimentos verificados no bairro da Jamaica. Ao fazê-lo tomou partido por aquela que lhe pareceu ser a parte mais fraca e exprimiu a intenção de questionar no plano parlamentar o comportamento das forças policiais. A sua actuação pode ser criticada, já que vivemos numa sociedade democrática e pluralista, mas não pode ser vituperada nos termos obscenos e trogloditas que têm caracterizado muitas das acusações que lhe têm vindo a ser dirigidas. É desde logo ridículo pretender responsabilizá-la pela manifestação de segunda-feira ou pelos distúrbios entretanto ocorridos. Não posso neste momento deixar de exprimir a minha solidariedade política e pessoal.
2. A extrema-direita anti-parlamentar, selectivamente anti-liberal e exacerbadamente nacionalista, parece estar finalmente a tentar organizar-se de forma institucional no nosso país. Os propósitos que André Ventura enunciou no momento da entrega das assinaturas necessárias para a formalização do novo partido político que lidera, no Tribunal Constitucional, não deixam margem para dúvidas. A sua intenção é clara: tentar inscrever-se na corrente extremista de direita que tem vindo a adquirir progressiva expressão em vários países europeus e que mantém relações de grande proximidade com a Administração Trump. Já não estamos apenas perante um tipo de discurso facilmente apodado de populista. Estamos a entrar num território doutrinário perigoso, que noutras épocas históricas serviu de antecâmara à afirmação triunfante do movimento fascista.
É certo que este novel projecto partidário não parece ainda suscitar especiais expectativas na população portuguesa. Mas não tenhamos ilusões acerca do perigo real que encerra. Um discurso musculado no plano jurídico-penal, meia dúzia de propostas de índole xenófoba proferidas em tom nacionalista, cirúrgicos ataques demagógicos às instituições da República, com particular incidência no Parlamento, poderão concitar imediata adesão de alguns segmentos eleitorais objectiva ou subjectivamente em situação de perda económica, social e cultural. A circunstância de termos hoje canais televisivos e alguns jornais que praticamente reduziram a sua actividade à produção de informação e debate sobre acontecimentos do foro desportivo ou criminal empobrece de tal ordem o espaço público que favorece o crescimento dos extremismos políticos de pendor irracional e demagógico.
Nunca como hoje os partidos mais moderados que, à esquerda e à direita, defendem o modelo democrático-liberal e pugnam por uma equilibrada articulação entre o mercado e o sector público viram recair sobre si tamanha responsabilidade histórica. De algum modo, o que agora se passa só tem paralelo nos anos trinta do século passado. Há, todavia, uma diferença significativa. Nessa altura a extrema-direita beneficiou do temor que junto de largos sectores da sociedade gerava a chamada ameaça bolchevique, corporizada no poder da União Soviética. Hoje essa ameaça não existe, o que não significa que o perigo de ascensão da extrema-direita esteja excluído.
Os riscos na presente ocasião histórica têm mais que ver com eventuais erros cometidos pelas forças políticas mais centristas. Um desses erros, e decerto não menor, é aquele que consiste na radicalização, por motivos tacticistas, do centro-esquerda e do centro-direita, já que daí poderia advir uma polarização de tal ordem fracturante das sociedades democráticas que poderia conduzir ao triunfo dos extremismos. Ou melhor, de um extremismo, já que, ao que parece, só a extrema-direita está em condições de aspirar a uma posição hegemónica nas sociedades ocidentais. Por isso mesmo, se há coisa que têm de ter todos quantos estão empenhados em impedir que tal desastre aconteça é juízo, muito juízo. O que infelizmente sabemos que não é a coisa melhor partilhada do mundo.