O Bairro da Jamaica, no Seixal, é um daqueles lugares que nos fazem lembrar o país que também somos. Um problema com três décadas, ignorado durante demasiado tempo.
Os prédios começaram a ser construídos nos anos 80. Inacabados, foram ocupados a partir da década de 90 e transformaram-se na casa de mais de 230 famílias. Em Dezembro último, começou finalmente a operação de realojamento, que só deverá ficar concluída em 2022.
Neste nosso jeito de ser, perante um embaraço, fazemos de conta que não é nada connosco. Fizemos com Vale de Chícharos (é este o verdadeiro nome do bairro) o mesmo que experimentamos em tantas outras periferias urbanas, com histórias idênticas de estigma e guetização. Estabelecemos uma zona de quarentena, colamos um rótulo a todos os que lá moram e evitamos falar do assunto. Até ser inevitável.
Claro que também vi o vídeo da actuação da Polícia de Segurança Pública. Não consigo ter uma opinião definitiva sobre o que se terá passado — uma parte da história não é a história toda — mas não fico indiferente àquilo que se impõe como um muito provável uso desproporcional da força por parte dos agentes.
Todo o cenário e contexto favorecem a exacerbação de preconceitos e estereótipos, também eles fragmentos do tal modo de ser. Um grupo de jovens negros, num dos bairros mais degradados do país, a desafiar as autoridades.
Num relatório publicado no início de 2018, o Comité Europeu Contra a Tortura assinalou a falta de consciência das autoridades perante um cenário de violência estrutural e sistemática por parte das forças policiais. Estrangeiros e afrodescendentes serão os mais atingidos.
Toda a discussão gerada nos últimos dias, motivada pelos acontecimentos no Seixal – e as reacções subsequentes –, alimentada pela manifestação em Lisboa e amplificada pelos distúrbios na noite seguinte contribuiu para recolocar no topo da agenda a questão estrutural do racismo.
Sem necessidade de cair no lugar-comum de “Portugal, um país racista” — porque não se combatem generalizações com outra generalização — facto é que, ao contrário do que sugere o discurso oficial e a opinião expressa no espaço público, o racismo não está resolvido. Resiste, latente no dia-a-dia, declarado sempre que estimulado.
Bem sei que as caixas de comentários online valem o que valem em termos de representatividade, mas qualquer rápida incursão a um desses espaços permitirá concluir que, quando liberto de filtros, amparado por "ondas" do momento, o preconceito expressa-se de forma inquietante, não raras vezes antecedido de contraditórias declaração de interesses — "Eu não sou racista, mas...".
O racismo e a xenofobia, que estão intimamente relacionados, podem ser identificados a diferentes níveis e de muitas formas. Se, do ponto de vista formal, o quadro legal estabelece regras que impedem comportamentos discriminatórios de qualquer espécie, a prática diária, dos abusos de autoridade ao acesso ao mercado de trabalho, desmente as boas intenções do legislador e a "ingenuidade" do cidadão, repetindo-se relatos de comportamentos diferenciados consoante a raça ou origem dos indivíduos.
Apesar da sua gravidade, estas situações, de que todos conhecemos exemplos, não se sobrepõem à perigosa expressão racista camuflada, exteriorizada amiúde. O resistente mas não assumido "nós e eles" é empecilho que impede a construção de uma sociedade verdadeiramente integradora, que não recusa a diferença, não força a hegemonia, nem procura construir unanimidade, mas aceita a diferença como uma sua parte, natural e desejável.
As formas latentes de racismo são, a prazo, as mais perigosas. Desde logo, porque impedem a identificação da real dimensão do fenómeno. Depois, porque impedem a tomada de medidas para mudanças estruturais e de longo prazo.
O racismo é expressão última da ignorância e a ignorância combate-se com educação. Na falta desta, enquanto nos entretemos a negar o óbvio, criamos terreno fértil para que este tipo de disfuncionalidades prevaleça e, no limite, se consolide, talvez à espera de uma liderança legitimadora.