“O sr. Gulbenkian era muito bom a guardar segredos”

O que é que a nacionalidade significava para Gulbenkian? Que tipo de fundação quis criar? Jonathan Conlin, o académico que fez a nova biografia de Calouste Gulbenkian, tenta entrar na cabeça do homem que criou a instituição de beneficência que mais terá influenciado o Portugal da segunda metade do século XX. Este retrato mais apurado do fundador pode ajudar a traçar o futuro da fundação.

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O biógrafo de Calouste Sarkis Gulbenkian, Jonathan Conlin, não conseguiu descobrir a data de nascimento do seu objecto de estudo. É um dos segredos que deixou por desvendar a nova biografia de Gulbenkian, O Homem Mais Rico do Mundo, As Muitas Vidas de Calouste Gulbenkian, feita com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian para comemorar os 150 anos do nascimento em 2019. O lançamento desta impressionante obra de investigação com quase 500 páginas, cem delas de notas, foi quinta-feira ao final da tarde na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, numa sessão que assinala o arranque das comemorações.

Nesta entrevista feita no início do mês num pub londrino, o Boot and Flogger, o historiador inglês usa a imagem do local onde nos sentámos para escapar ao barulho, uma pequena sala reservada nas traseiras, para explicar como este cenário seria ideal para uma conversa com o seu biografado. Um lugar longe dos olhos do público para “uma personalidade solitária” (p.18), “um facilitador de bastidores” (p.161) com “uma aura de mistério” (p.212), um homem que “estava, reconhecidamente, habituado a ser visto com antipatia” (p.360), como descreve Jonathan Conlin na biografia.

O historiador inglês, que dá aulas na Universidade de Southampton, autor de obras como uma história da National Gallery de Londres, museu com que a vida de Gulbenkian se cruza, ou de uma biografia do economista Adam Smith, escolhe um lugar na City, St Helen’s Place, como o que mais lhe faz lembrar Gulbenkian em Londres. “O seu escritório, infelizmente bombardeado na Segunda Guerra Mundial, era no St Helen’s Court Building.” É para lá que nos dirigimos depois da conversa, tentando que os edifícios clássicos que formam o pátio de St Helen’s Place nos devolvam algo do ambiente urbano do centro financeiro de Londres, onde Calouste chegou pela primeira vez no Verão de 1884 para estudar no King’s College. O pátio é marcado pela sombra inesperada de um edifício de Norman Foster, o Gherkin (o Pepino), que se impõe entre os telhados, mostrando como a arquitectura hightech tem tomado conta da zona.

Igualmente resguardada, no final de uma rua particular, está a outra morada londrina de Gulbenkian, em Hyde Park Gardens, onde fica a primeira casa que comprou para a família em 1899 depois de anos vividos em hotéis. Gulbenkian casara-se em 1892 com Nevarte Essayan, tendo já nessa altura nascido Nubar, o filho mais velho que chegou a pôr Gulbenkian em tribunal. Rita nasceria um ano depois já na nova morada com vista para Hyde Park, onde se instalavam os banqueiros com fortunas recentes e onde Gulbenkian podia passear nos prados verdes.

Faltavam 55 anos para morrer em Lisboa, onde chegou durante a Segunda Guerra Mundial, o culminar de uma biografia marcada pelo ritmo dos negócios do petróleo, de que Gulbenkian nunca se quis desfazer, um erro que segundo Conlin o terá impedido de chegar à arquitectura certa para a sua fundação. Um “grande descuido”, escreve o historiador na última linha da biografia, antes do epílogo final, dedicado à execução do testamento.

Porque é que escolheu começar a sua biografia com uma reunião imaginária sobre o Acordo da Linha Vermelha, em que se teria desenhado o mapa que em 1928 divide o petróleo do antigo império otomano pelos sócios da Turkish Petroleum Company, incluindo os famosos 5% de Gulbenkian?
Porque no mundo que fala inglês Gulbenkian é conhecido, se é que chega a sê-lo, pelo Acordo da Linha Vermelha. Apesar de se contar que foi o próprio Gulbenkian a desenhar a linha, de acordo com uma história inventada pelo seu filho, a verdade é que ele não estava nessa reunião.

Pergunta porque é que um biógrafo se há-de focar nessa história que não aconteceu? Pensei no contraste entre o gesto muito dramático de desenhar essa linha no mapa de outra pessoa – o que dá a ideia de alguém numa posição de grande autoridade, de um grande imperialista –, quando Gulbenkian era, na verdade, uma pessoa que exercia a sua influência sempre indirectamente, em salas traseiras, como esta onde estamos.

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St Helen’s Place, na City de Londres, onde Gulbenkian tinha o seu escritório; o edifício foi destruído na Segunda Guerra Mundial

Pensei que era uma maneira de atrair o leitor médio, chamando a atenção para a tensão entre os mitos sobre Gulbenkian e o homem verdadeiro. Um é muito público, dramático, outro é muito sossegado, de falas suaves, de pequenos gestos.

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Calouste Gulbenkian casou em 1892 com Nevarte Essayan no Hotel Métropole, em Londres, que era a residência de Gulbenkian desde 1891. O retrato nupcial é um pouco rígido, nota a biografia

A biografia é a transformação de Gulbenkian no Sr. Cinco por Cento da indústria petrolífera? Diz que um dos seus feitos foi a capacidade de envolver impérios e multinacionais numa teia durante mais de 50 anos.
O Sr. Cinco por Cento é uma etiqueta que só começou a ser-lhe dada a partir dos anos 1930. Se olharmos para a correspondência entre 1910 e 1920, a Turkish Petroleum Company (TPC), depois transformada em Iraq Petroleum Company (IPC), só ocupa uma pequena fracção das suas cartas, da sua atenção. Naquele tempo ele esteve envolvido em muitos outros negócios de que nós nunca ouvimos falar.

A TPC é apenas uma empresa de um cartel entre muitos outros cartéis que ele administra. Alguns desses cartéis resultaram, outros não.

A TPC resultou e os seus 5% acabaram por ser os 5% de um bolo muito, muito grande. É claro que o livro em inglês se chama Mr. Five Per Cent, mas essa é uma etiqueta que lhe é dada no fim da vida e aplicada retrospectivamente. Há muitos mais Gulbenkians.

Os 5% referem-se apenas ao Iraque e ao Médio Oriente, mas ele foi muito activo na criação da Shell, também naquilo que é hoje a Total, a empresa estatal francesa de petróleo, igualmente muito activo na Venezuela, no Cáucaso.

Ele pôs o seu dedo em partes de um mapa muito maior do que o do Acordo da Linha Vermelha, como mostra um mapa que está no final do livro dedicado ao mundo de Gulbenkian, que inclui, por exemplo, minas na Austrália ou na África do Sul.

Porque é que um arménio como Gulbenkian, um “amira”, tinha o perfil perfeito para este negócio? Ao mesmo tempo, este arménio parecia um pouco americano no seu individualismo. Há uma tensão aqui entre estes dois perfis?
Os “amiras” são uma casta muito pequena em Istambul. São membros muito ricos da mesma comunidade étnica: todos inter-relacionados pelo casamento, também pelos negócios, porque nesta classe negócio e casamento é a mesma coisa.

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Gulbenkian vestido à ocidental com os primos de Bagdad, trajados segundo a tradição local

Estão muito abertos a aprender línguas e cada nova geração manda os seus filhos para um novo porto, um novo país, sempre à procura de novas fronteiras para o comércio. Por isso, há esse espírito de empreendedorismo, com gente que está habituada a ser mandada para um país desconhecido muito nova, como um novo ramo da empresa. É uma combinação de mobilidade empreendedora com essa capacidade de falar, nas suas casas, francês, turco e arménio, ou ainda aprender novas línguas como o russo ou o inglês. Por isso, valorizavam a educação e são muito abertos à colaboração com estrangeiros.

Ajudava também ser um homem que não tem um país por detrás?
Isso ajudava decididamente. Nunca ninguém suspeitava que Gulbenkian estava a formar os seus cartéis para o Governo arménio, que é inexistente, ou um Estado fantoche russo – ou seja, é uma identidade clara, que todos conhecem, mas não tem nenhuma agenda.

Ele era um bom arménio? Alguns membros da sua família dizem o contrário.
Os arménios são muito generosos e há uma longa tradição de caridade. Se tiverem dinheiro, dão-no à sua própria terra, Talas – seria o caso dos Gulbenkian. Dão-no para reconstruir uma escola, uma igreja, para construir um ginásio ou ajudar órfãos na aldeia.

É claro que o genocídio torna isso difícil, porque dispersa a população e aliena-a. Por isso, esse modelo de filantropia foi posto em causa pelos acontecimentos, mas, mesmo antes do genocídio, Gulbenkian já não está a pensar nesse modelo de clã familiar.

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Sentados à mesa, Calouste Gulbenkian e a mulher Nevarte; atrás, da esquerda para a direita, Kevork e Rita Essayan (genro e filha), Roberto Gulbenkian (sobrinho), Mikhael Essayan (neto), Nubar Gulbenkian (filho) e mulher

Muitas pessoas esperavam que ele fosse mais generoso com a diáspora arménia ou com a nação arménia. Gulbenkian era generoso, mas não ia dar o seu dinheiro inutilmente à comunidade arménia, como fizeram outros “amiras” ricos.

A decisão de deixar os irmãos entrarem em bancarrota em 1907 é algo de que nunca se tinha ouvido falar. A empresa dos seus irmãos chamava-se Sarkis Gulbenkian, o nome do pai, e deixá-la entrar em bancarrota foi uma profunda humilhação.

Por que razão Gulbenkian deixou os irmãos falir?
Porque naquela altura ele já tinha decidido que não ia fazer a sua vida em Istambul. Talvez tenha virado as costas a essa comunidade.

Pode ter ficado ressentido com os pais. É espantoso que, quando a mãe morreu, em 1908, ele não voltou a Istambul para o funeral. Isso parece chocante em qualquer cultura. Sei que ele dormia no quarto da mãe até aos 14 anos, altura em que foi mandado para Marselha. Parece ter sido muito próximo da mãe, diríamos que foi uma criança acarinhada, talvez tímida ou mesmo mimada.

Está a falar de um grande trauma?
Não sei. Há um buraco. O sr. Gulbenkian manteve um dos seus segredos. Graças a Deus! Ele era muito bom a guardar segredos.

Nas últimas páginas, tentar explicar porque é que este súbdito britânico não deixou a sua fortuna ao Reino Unido. Parece até espantado com o resultado. Esta perspectiva está correcta?
Acho que o problema está na palavra “ao” ou “à”. Ele planeou deixar a fundação a toda a humanidade. Sabemos isso porque o conselheiro escolhido, Cyril Radcliffe, com quem discutiu as suas intenções filantrópicas desde 1937, sempre falou de toda a humanidade. Não eram os arménios, os britânicos, os franceses ou os portugueses, essa era apenas a questão onde é que a sede da fundação seria legalmente. Gulbenkian passou toda a vida a trabalhar com empresas e instituições que estão sediadas num país por causa dos benefícios fiscais, mas na verdade trabalham noutro sítio qualquer – Panamá, Liechtenstein, Hong Kong. Ele tem empresas em todos estes sítios, locais onde nunca esteve, que são apenas um nome no envelope das cartas. Gulbenkian é alguém habituado a criar aquilo a que hoje chamamos “empresas de fachada”.

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Calouste Gulbenkian aos 30 anos

Mas na sua opinião teria feito mais sentido que a sede fosse no Reino Unido?
Devia ser uma fundação internacional. Mas em 1955 fazer uma instituição de beneficência para a humanidade era coisa quase sem precedentes. Há a Fundação Rockefeller, que já existia há algum tempo, sediada nos Estados Unidos …

Rockefeller é americano…
Sim, é americano. Mas se disser que Rockefeller deu o dinheiro aos Estados Unidos, isso é apenas verdade no sentido legal, porque a fundação foi aí registada por razões fiscais; já o dinheiro é gasto em todo o lado.

Gulbenkian queria evitar os impostos, era uma das suas obsessões, mas queria dar o seu dinheiro ao mundo. Infelizmente, o primeiro tema torna-se tão importante que acaba a assinar – em parte porque estava a receber informação misturada de José de Azeredo Perdigão sobre se teria isenção fiscal – o seu quarto testamento em 1953, que não saberíamos se seria o último [em que decide que a sede da fundação será em Lisboa].

Por isso, o desejo do Gulbenkian era fazer uma fundação internacional para a humanidade.
O que bateria certo com a forma como viveu a sua vida. Se entrarmos na sua cabeça, percebemos com as nações não são assim tão importantes para ele. Infelizmente hoje pensamos que as nações são naturais, que existem, o que se torna mais e mais assim por causa de Trump, May ou Erdogan.

Mas a pergunta é se o resultado é suficientemente internacional. A Fundação Gulbenkian é suficientemente internacional?
Isso é uma boa pergunta, mas não é uma questão a que eu, como historiador, esteja aqui para responder.

Mas apresenta alguns números. Diz que a percentagem do investimento que vai para Portugal nos primeiros anos é de 45% e aumenta acentuadamente depois. Olhou agora para os números?
Isso é do conhecimento público. Pode encontrar isso no website. É bastante alto.

O que podemos perguntar é até que ponto devem ser respeitados os desejos do fundador. É uma pergunta a que devemos responder, mas antes dela devemos ter uma biografia dessa pessoa. Como era Gulbenkian? O que é que a nacionalidade significava para ele? Não muito, na verdade. O que é que as fronteiras significavam? Ele trabalhava para lá das fronteiras. Ignorava-as. Só lidava com elas se precisasse, de outra forma ignorava-as.

A criação da fundação em Lisboa foi um acidente? É esta a sua tese?
Foi uma opção escolhida depois de muitas opções terem sido consideradas: Panamá, Estados Unidos, Grã-Bretanha, já França penso que nunca foi seriamente considerada. Foi uma opção entre muitas e, quando o testamento de 1953 foi assinado, Perdigão diz a Salazar: “É isto, o testamento não vai ser alterado. Vou fazer com que não seja alterado.” Bem, há só um problema com isso: é que não se trata do seu dinheiro. Não lhe cabe decidir que aquele é o testamento final. É uma promessa muito interessante de se fazer. Um advogado deve fazer uma promessa como esta? Essa informação foi encontrada na Torre do Tombo, no Arquivo de Salazar. É o Perdigão que diz isso, não é o Gulbenkian.

Azeredo não sai muito bem dessa fotografia. Ele teve uma ligação mais estreita com Salazar do que se pensava? Ficou surpreendido com isso?
Fiquei surpreendido, porque politicamente sei que não estavam na mesma ponta do espectro. Não eram aliados naturais, as suas relações eram cerimoniosas.

Ele é visto como tendo resistido ao ditador através da fundação.
Encontrar uma carta em que Perdigão está a escrever a Radcliffe negando que ele mostra as suas cartas a Salazar e depois descobrir que mesmo essa carta com a negação foi mostrada a Salazar… Isso está no arquivo.

O que posso dizer é que Perdigão, precisamente por causa do que você disse sobre a tensão com Salazar, quer fazer da fundação um fait accomplis (em 1956, houve uma sugestão de que Salazar poderia querer substituí-lo por Pedro Teotónio Pereira, como alguém em quem ele confiava mais). É por isso que nos primeiros anos Perdigão começa a gastar dinheiro rapidamente com as bolsas, mesmo antes da fundação existir. Certamente que construir aquela enorme sede é uma forma de dizer: “Nós conseguimos alguma coisa grande aqui.”

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Calouste Gulbenkian no parque Les Enclos, em França, na década de 30: “Uma personalidade solitária”, “um facilitador de bastidores” com “uma aura de mistério”, um homem “habituado a ser visto com antipatia”, escreve o biógrafo

Muito rapidamente Salazar diz, e cito o seu diário, que “Perdigão está a fazer um óptimo Ministério da Cultura”. Podemos dizer que Perdigão estava proteger a sua posição. E fazendo isso talvez estivesse a proteger a fundação de ser completamente nacionalizada por Salazar.

Porque é que Radcliffe desistiu de resistir no final e é ultrapassado por Perdigão?
Isso é um grande falhanço. No final, todos falham: Perdigão, o filho Nubar, o genro Kevork [o terceiro dos trustees, além de Radcliffe e Azeredo], mas acima de tudo ele é abandonado por Radcliffe.

Talvez seja fácil dizermos isso agora à distância, porque temos toda a informação e é fácil fazermos as decisões parecerem mais fáceis do que são. Radcliffe não percebeu que podia ter feito um escândalo maior junto da opinião pública. As suas respostas são quase pateticamente incompetentes. Vai ter com Salazar ao Palácio de São Bento e pergunta-lhe o que deve fazer: “Estou dividido em tornar-me o presidente da fundação e tudo o que tenho em Londres.” Porque é que ele faz isto diante de Salazar? Parece muito pouco político e uma má estratégia. Ele como administrador principal tinha um rendimento muito elevado, 20 mil libras, enquanto Perdigão teria quatro mil, o que também mostra como Gulbenkian os via e a sua importância relativa.

Gulbenkian era um filantropo da sua época?
Ele não é um filantropo arménio, ele é arménio e filantropo. Ele é muito um filantropo “amira”, no sentido em que pensa a beneficência como internacional. De certa forma, está aplicar algo da mobilidade arménia. Os arménios eram móveis nos negócios, mas muito paroquiais na caridade. Ele era global nos negócios e queria igualmente ser global na sua filantropia. Como disse, a única fundação que na altura era dedicada à humanidade era a Rockefeller. Mas, sim, ele era um filantropo do seu tempo.

Nos agradecimentos finais, diz que Mikhael e Martin Essayan esforçaram-se para que a relação triangular entre a família, a fundação e consigo funcionasse. Houve alguma tensão durante o processo?
É uma relação triangular. Normalmente numa biografia temos o autor e os descendentes. Neste caso é como se existissem duas famílias, a família Essayan Gulbenkian e depois os outros descendentes, que é a fundação e ainda Portugal. Num certo sentido, todo o país, por causa do grande impacto que a fundação teve em todos os portugueses desde 1955. Os dois grupos são os dois beneficiários.

Foi criado um painel de supervisão da biografia. Como é que fazia com a família e a fundação em relação ao que ia descobrindo?
Todos os seis meses o painel encontrava-se e eu partilhava rascunhos dos capítulos com eles. Mais tarde Martin Essayan juntou-se ao painel, por isso também leu o rascunho. Mais perto do final, Rui Vilar [antigo presidente da fundação e actual administrador não executivo] e Rui Esgaio [secretário-geral] também a leram. Eles tinham a noção do que estava a acontecer. Eles não deram uma bolsa à minha universidade, dizendo-me para voltar cinco anos depois com a biografia.

O que é que a Fundação Gulbenkian lhe pediu exactamente?
Queriam que fosse uma biografia académica, que fosse baseada numa investigação internacional profunda dos arquivos. Não só uma investigação feita nos seus próprios arquivos, mas em todo o mundo, como era esperado. Usámos arquivos de Washington, Moscovo, São Petersburgo, Istambul, Paris, Bruxelas, Frankfurt, em todo o mundo Tinham lido o meu artigo na revista Análise Social de 2010 e encomendaram-me o livro. Acho que isso só lhes fica bem. No sentido em que queriam saber a verdade e foram corajosos em querer lidar comigo depois de lerem o artigo. Também concordaram que podia rever aquele artigo e integrá-lo como epílogo. Isso estava no acordo feito.

Disse que teve total controlo editorial. O painel de supervisão foi pedido por si?
O painel de supervisão foi sugerido por alguém que tinha feito a história da Shell e por pessoas que fizeram histórias de bancos e que me disseram que era preciso uma espécie de broker entre mim e a fundação. Alguém que fosse capaz de ver as minhas razões, como precisar de mais tempo. Mas também se a fundação dissesse: “Nós lemos isto e não gostamos daquele capítulo, queremos tirá-lo.” Ou qualquer coisa do género. E o painel pudesse dizer: “Isso não é liberdade académica.” Foi uma forma de facilitar a relação entre os dois. Também garantia à fundação que eu não estava a ser preguiçoso.

Em todo este contexto de visibilidade das mulheres, pós MeToo e Time's Up, a biografia não explora muito as relações entre Gulbenkian e as mulheres da sua vida. Diz-nos que dormiu no quarto da mãe até aos 14 anos, mas não voltou para o funeral; casou-se por amor, mas dormiu num hotel a maior parte da sua vida; tinha regularmente sexo com jovens mulheres, a quem pagava; não prestava atenção à filha e retirou-lhe o filho durante um grande período de tempo. Quem é este homem, se olharmos para as mulheres na sua vida?
Está partir do pressuposto que amor e sexo são a mesma coisa.

Estou a dizer que se casou por amor, mas dormiu num hotel grande parte da sua vida. Por isso, estou a dizer que havia uma distância entre os dois.
Sim. Eles viveram juntos em Londres, depois mudaram-se e viveram juntos em Paris. Penso que foi apenas nos anos 1920 que ele começou a dormir todas as noites no Ritz. Nessa altura, já está casado há 30 anos. Isto é uma época em que muitos casais tinham quartos ligados. Vivem juntos no n.º 38 de Hyde Park Gardens, com os filhos, numa vida bem burguesa.

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Nubar Gulbenkian, o filho com quem Calouste mantinha uma relação complexa. Os dois chegaram a ter uma disputa marcada em tribunal

As mulheres não aparecem muito no livro, vão e vêm.
Essa é a experiência dele. Via a mulher como uma interrupção que tinha de ser afastada o mais rapidamente possível, para poder voltar aos papéis do escritório. Quanto à filha, era vista em primeiro lugar como alguém que conseguia continuar a descendência, dando um neto a Gulbenkian, uma vez que Nubar não podia ter filhos. A pressão ficou toda do lado dela.

Quantos às jovens mulheres a quem ele pagava para ter sexo, aí não estamos a falar de amor, ele fá-lo por razões de saúde [como tónico de rejuvenescimento]. Ele tem um médico arménio otomano que lhe diz para o fazer.

Claro que não é sobre amor, é sobre a forma como ele vê as mulheres. Acha que Gulbenkian é misógino?
[Suspiro]. Temos de nos lembrar que ele cresceu num tempo em que a sogra se casou aos 13 anos. Ele casou-se com a mulher quando ela tinha 17 anos [conheceu-a aos 14 anos, quando ele tinha 20]. Casar-se com essa idade é ainda muito comum em muitas partes do mundo. Faz sentido ir para esses sítios e dizer que essas pessoas não se podem casar aos 14, 15, 16 anos, quando é a tradição dessas sociedades? Isso parece-me imperialismo cultural.

Ele vive no Ocidente…
Está a dizer que ele tem de ser assimilado ou não será aceite. Isso também me parece imperialista. Pode viver na nossa comunidade, mas só se portar bem, como um bom ocidental.

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Calouste Gulbenkian na década de 1930 na propriedade Les Enclos, em França

Acha que essa relação distante pode ter que ver com o trauma de ter sido separado da mãe aos 14 anos?
Suspeito que pode ter acontecido algo com a mãe que não percebo o que foi. Mas foi algo fora do comum não ter ido ao seu funeral.

O seu casamento era tão tradicional como o dos seus pais e não se esperava que os homens fossem fiéis às mulheres. Não naquela época, nem na sua classe. Era normal casar-se com alguém muito mais novo. Era completamente normal casar-se numa idade que hoje vemos como abuso de menores. Hoje casar-se aos 13 anos pode dar prisão.

Quanto à sua visão sobre as mulheres, ele não pensava em termos de género, ele não tinha uma opinião sobre homens ou uma opinião sobre mulheres, não dividia o mundo assim.

Conseguimos saber quão jovens eram as mulheres com quem tinha sexo pago? Não acredita nas outras memórias que dizem que elas podem ser prostitutas?
D. H. Young [secretário de Calouste] diz que ele tirava raparigas da sarjeta. Se olharmos para a grande quantidade de papéis e cartas para médicos, a quantidade de medicamentos que levava para todo o lado... Tinha 44 médicos na sua lista de contactos em Lisboa. Alguém assim, que se preocupa quando a secretária começa a tossir e a manda ao médico, uma vez que têm de estar na mesma divisão, teria sexo com uma mulher tirada de uma sarjeta?!

Mas isso é uma prova indirecta? Não é uma conclusão directa.
O que digo é que é muito improvável que a história de D. H. Young sobre a sarjeta seja verdade. Nubar tem outra história, que conta para fazer rir, em que uma destas mulheres vomita [no final de uma refeição sumptuosa]. São histórias que Nubar conta para se vingar do pai. É, como diz a expressão, “Quem ri por último ri melhor”, e é ele quem conta a versão que consta dos livros de história sobre o pai. Não estou com isto a negar que haja mulheres jovens fornecidas para seu prazer.

Há alguma maneira de saber se eram muito jovens?
Não. Parece que estou a arranjar desculpas, mas esforcei-me muito para encontrar vestígios disso.

Não há nenhum traço dessa informação?
Não – o que mostra, só por si, como os empregados de Gulbenkian estavam bem organizados e treinados. Suponho que fosse Madame Soulace, a governanta de Gulbenkian em Paris, a fornecer as outras mulheres. Por isso, é uma mulher que fornece as mulheres. Também é ela que trata dos canários.

Esta parece ser uma família disfuncional, com Nubar a levar o pai a tribunal, Rita separada do filho durante tantos anos, Nevarte a pensar em divórcio. Mas ao mesmo tempo há muito amor entre eles, podemos ver isso em algumas das cartas que cita. Pode comentar?
Acho que ele gosta muito de controlar as coisas que ama, isso inclui objectos, pinturas, esculturas. Preocupa-se com a saúde dos seus filhos, como chama às obras de arte, mas também com os seus filhos reais. Preocupa-se com o seu bem-estar. Mas ele é o juiz do que é bom para elas, ele é o juiz do que deve ser uma vida boa.

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Algumas das cartas entre ele e Nevarte são comoventes.
Sim. Também entre Gulbenkian e o neto. A filha, Rita, é muito perspicaz naquilo que escreve sobre o pai. Como também é muito perspicaz em relação àquilo que escreve sobre  irmão. Havia ciúme entre os dois, mas também muito amor. É por isso que a vida é tão rica, porque podemos amar alguém e magoá-lo.

Gosta do seu objecto de estudo? Gosta de Calouste Gulbenkian?
Espera-se sempre que os biógrafos se apaixonem pelas pessoas sobre quem escrevem. No meu caso, já pensei muito nisso, viajei atrás dos seus passos. Gulbenkian para mim não é Calouste, é o sr. Gulbenkian. O sr. Gulbenkian não quer o meu afecto, o meu amor, quer que eu o respeite. E ele obteve o meu respeito. Há alguns dos seus segredos que conseguiu manter, porque não os consegui descobrir. E há um ou dois segredos que descobri, mas não revelei.

Porquê? Não pode dizer isso a uma jornalista!
Se lhe contar, deixam de ser segredos.

Quem é que decidiu que essas informações se deviam manter secretas?
Fui eu! Eram só coisas à margem que não eram muito importantes. É bom ter alguma coisa em comum com ele. Tenho alguma coisa que partilho com o homem mais rico do mundo.

Conta que Paul Mak, o namorado/amante da filha, consumia drogas, mas nunca sabemos se ela também o acompanha no consumo.
O pobre “Mack” [como Rita lhe chamava]… Parece um indivíduo fascinante.

Por isso, não sabe se ela era toxicodependente? Se foi por isso que lhe retiraram o filho durante tantos anos?
Não.

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O biógrafo, Jonathan Conlin, não conseguiu descobrir a data de nascimento do seu objecto de estudo. É um dos segredos que deixa por desvendar O Homem Mais Rico do Mundo, As Muitas Vidas de Calouste Gulbenkian

Mas é provável ou não?
Não sei. Ela desaparece, o que é extraordinário. Vai-se embora, deixando o marido e o filho, para tentar escapar ao controlo do pai. É espantoso, se pensarmos que é uma mãe que deixa um filho.

Também não conseguiu saber a data de nascimento de Calouste. Não há registo do baptismo, nem outro documento que fale disso?
Não consegui. Tentámos encontrar o dia de nascimento por causa da celebração deste ano. Não era comum as pessoas celebrarem os anos, algumas culturas não o fazem. É fascinante, mas não sabemos. É provavelmente em Março.

Voltando a Lisboa: porque é que o Gulbenkian foi preso pela PIDE?
Ele recusou-se a sair da sua suite no Hotel [Aviz].

Mas isso é uma razão para a polícia política actuar?
Aparentemente era uma visita de Estado. Eles precisavam dos quartos para os dignitários que estavam de visita.

Pode ter havido qualquer razão escondida?
Ele achava que tinha qualquer coisa que ver com uma empresa petrolífera rival, porque Gulbenkian era talvez ligeiramente paranóico. E quando se tem aquela fortuna é bom ser paranóico. Sob o regime de Salazar podia-se ser preso por muito pouco.

Por outro lado, a biografia também conta que a relação de Nevarte com o director da PIDE, Agostinho Lourenço, era boa.
Sim, eles conheceram-se numa festa. A Nevarte era a alma da festa. Muito sociável, muito boa conversadora, o oposto do marido, que odiava ter companhia. Como ela disse: “Ele detesta pessoas.” Já ela adorava pessoas, especialmente embaixadores. Consigo imaginar a sua excitação quando conheceu o capitão Lourenço, responsável pela polícia secreta – uau! Talvez tenham flirtado um pouco. Ela era muito alegre e teve tempos felizes no final da vida.

No início da vida, foi muito difícil. O Gulbenkian não devia ser divertido nos anos de 1890, 1900, 1910, mas em 1940, 1950, quando combinaram ter vidas separadas, ela diverte-se muito.

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O palácio de Gulbenkian no nº 51 da Avenue d’Iéna, em Paris, que a família descrevia como um museu

Fala dos beberetes que ela dava nos bancos à porta da casa de Paris, no n.º 51 da Avenue d’Iena, porque não podia dar festas em casa.
Sim. Mas desde que escrevi o livro alguém sugeriu que essas festas deviam ser mais verdade para Rita do que para Nevarte. Provavelmente têm razão, porque faz mais sentido a filha ter feito isso. A origem da história é provavelmente Mikhael, o filho de Rita.

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Cortou muito material?
Havia coisas muitos técnicas no negócio do petróleo, que tinham que ver com a Venezuela ou com a Rússia. Era demasiada coisa e a biografia seria um negócio a seguir ao outro.

De certa forma, fiquei quase aliviado por a vida familiar ser, como diz, disfuncional. Fiquei também feliz por encontrar pormenores sobre o seu amor pelos animais e por jardins. Esses dois outros fios pude tecê-los com os negócios. Por isso, nós temos alguma coisa sobre os negócios, viramos a página e aparecem os gatos, os pássaros ou um estratagema maluco de Nubar. Essa é a maneira como Gulbenkian viveu a sua vida: uma emergência familiar e ao mesmo tempo uma emergência nos negócios. A vida não é compartimentada: durante cinco anos vou ser um homem de família, durante outros cinco um homem de negócios e noutros cinco anos vou cultivar o meu jardim. O mais difícil para mim, e não consegui fazê-lo, foi descrever um dia de Gulbenkian. Uma carta da sua mulher a dizer: “A Rita tornou a fazer isto, o que vamos fazer?” Uma carta de Madame Soulace a dizer: “O canário está doente ou os cisnes estão a morrer.” Ou do jardineiro a perguntar: “Que tipo de árvore planto aqui?” Ou Nubar a dizer: “Quero uma mesada maior.” A Shell a perguntar pela emissão de acções em Nova Iorque. Negociantes de arte a dizerem que há uma pintura acolá que Gulbenkian deve comprar. Como é que um homem com uma equipa tão pequena, que se recusa a delegar, consegue equilibrar todas estas coisas?

Este Gulbenkian é muito diferente do das outras biografias?
Muito diferente. Ralph Hewins, que trabalhou para o Daily Mail, um jornal muito mau, não teve nenhum acesso aos arquivos. Falou com Nubar, com Yervant, um cunhado ciumento e muito mais pobre, aquele que diz que Gulbenkian não era um bom arménio. Foi feita muito rapidamente e sabemos que havia um capítulo final sobre a fundação que foi cortado do livro, provavelmente porque Hewins foi ameaçado com um processo em tribunal. Nós tentámos ser mais académicos, mais completos, mais justos, menos sensacionalistas.

Este é um homem melhor do que mostram as biografias anteriores?
Sim. A de Ralph Hewins fá-lo parecer mais exótico, centra-se no lado mais dramático, no mito de Gulbenkian. A minha tenta dizer que há pessoas diferentes dentro dele. Como há em todos nós. Eu sou um marido, um professor, um filho.

Não li o livro de José Rodrigues dos Santos, Um Milionário em Lisboa, que é romanceado, porque não está traduzido em inglês. Também há uma biografia de Francisco Corrêa Guedes, um engenheiro português, que também não se baseava nos arquivos.

Qual foi o maior erro de Gulbenkian?
Acho que devia ter vendido os 5% antes de morrer.

Como o filho Nubar queria?
Sim. Se ele tivesse vendido os negócios do petróleo, tinha tido mais tempo para estabelecer a fundação como queria.

O que é que Gulbenkian nos pode ensinar hoje, neste mundo que mencionou e que quer ter cada vez mais fronteiras? Ele parece quase mais um homem de hoje.
Ele sabia que era arménio, mas essa identidade não estava colada a um Estado-nação. Queria beneficiar toda a humanidade. Acho que o que ele nos pode ensinar é aquilo que nos lembra – que todas as nações são comunidades imaginadas, como dizia [Benedict] Anderson, o famoso historiador. Nós podemos desempenhar muitos papéis ao mesmo tempo sem sermos esquizofrénicos.

Porque é que acha que a Fundação Gulbenkian apoiou esta biografia?
Rui Vilar mostrou-me um relatório antigo de Perdigão em que dizia que a fundação devia fazer uma biografia do grande fundador. 

Foto
A Fundação Gulbenkian começou logo a distribuir dinheiro em Portugal mesmo antes de ter sido formalmente criada GONçALO SANTOS/arquivo
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