Dados desactualizados do INE dificultam programa de rendas acessíveis
Governo vai regulamentar nos próximos três meses os mecanismos para a criação do mercado de arrendamento acessível. O INE, a quem foi pedido para desenvolver as estatísticas que vão fixar o valor de mercado, tem revelado números desajustados da realidade.
Manuela B. (nome fictício) precisa de mudar de casa, porque o T1 que comprou na Penha de França, uma freguesia de Lisboa, já é demasiado pequeno. Pelo preço que pode pagar de renda o melhor que conseguiu foi arrendar um T2 na margem sul, mas com a expectativa de conseguir obter alguma receita colocando no mercado de arrendamento o T1 em Lisboa, mas a preços razoáveis. Anda a ouvir falar há mais de um ano da intenção do Governo de criar um mercado de arrendamento acessível, que permita aos senhorios beneficiar de descontos fiscais se arrendarem os seus imóveis com valores abaixo de mercado. O mercado das rendas acessíveis ainda não está regulamentado (o Governo ficou com autorização legislativa para publicar o decreto-lei que vai definir as suas condições até ao final de Fevereiro), mas Manuela até estaria disponível para esperar uma vez que, por convicção, não queria contribuir para “um mercado que está altamente especulativo”.
Quando Manuela B. foi consultar as tabelas do Instituto Nacional de Estatística (INE) para conhecer o valor de mercado fixado pelo INE para a sua rua deparou-se com números que a desmotivaram. De acordo com as Estatísticas de Rendas da Habitação ao Nível Local que o INE publicou pela primeira vez (e até agora única) no passado dia 21 de Março, a renda de mercado em Arroios é de 8,7 euros o metro quadrado. A renda de mercado do T1 de Manuela, que tem 54 metros quadrados seria 469,8 euros.
Para poder beneficiar dos incentivos fiscais que estão a ser preparados pelo Governo, e que a poderiam isentar do pagamento de impostos sobre os rendimentos, teria de cobrar uma renda de 375,84 euros. Isto quando sabe que na sua freguesia as rendas mais baixas que estão a ser pedidas por um T1 começam nos 850 euros. E quando esse mesmo T1 ainda lhe traz encargos, nomeadamente uma prestação mensal ao banco de 350 euros. Manuela desistiu de esperar por esse novo mecanismo e tenciona, agora, arrendar a sua casa por três anos, para poder beneficiar do desconto de 2% nos impostos sobre rendimento que vai auferir das rendas. Essa alteração legislativa, com a qual o Governo quer incentivar o aumento da duração dos contratos para dar mais estabilidade ao mercado, já foi promulgada e está em vigor. Quem fizer contratos de dez anos poderá ver baixar o IRS dos actuais 28% para os 14%.
Valores desajustados
A perplexidade de Manuela pode ser multiplicada por todos aqueles que se detenham a analisar as estatísticas oficiais divulgadas pelo INE. E aumentará se se tentar compará-los com os valores apurados, por exemplo, pela Confidencial imobiliário (CI), uma empresa privada que trabalha no sector da estatística do imobiliário há vários anos. Em quase todas as comparações feitas pelo PÚBLICO, a diferença entre os valores de renda apurados ronda os 20%.
De acordo com o Confidencial imobiliário, no último trimestre de 2017, o valor médio do metro quadrado na Penha de França era de 10,2 euros - o T1 de Manuela teria uma renda de 550 euros (muito acima do valor comparável do INE). No caso do terceiro trimestre de 2018 (os últimos dados divulgados pelo CI) , o valor médio por metro quadrado já era de 11,4 euros - e o T1 de Manuela já teria uma renda de 615,2 euros.
Há muitas razões, inclusive metodológicas, a explicar estas diferenças. O INE apura medianas (que expurgam os casos extremos) e a Confidencial imobiliário trabalha com médias. O INE trata estatisticamente todo o universo de contratos. A Confidencial Imobiliário faz as suas estatísticas a partir das comissões cobradas pelos mediadores imobiliários. De acordo com as informações dadas ao PÚBLICO pelo director da CI, Ricardo Guimarães, a empresa tem uma quota de mercado de 29%, pelo que tem "total confiança na representatividade da amostra”.
As estatísticas do INE são feitas a partir dos valores declarados nos novos contratos de arrendamento de alojamentos familiares, através dos dados fiscais recolhidos na Autoridade Tributária, onde os senhorios são obrigados a comunicar os contratos de arrendamento, através do Modelo 2. Essa informação é cruzada com a declaração para efeitos de IMI (a partir da qual retiram as características que identificam o alojamento arredado) e, depois de recolhidos e cruzados todos os dados, o INE fixa o valor mediano (que separa em duas partes iguais um conjunto ordenado de rendas por metro quadrado) de cada município nacional, e de cada freguesia no caso dos municípios de Lisboa e Porto.
O facto dos valores do INE se reportarem a dados de 2017 num mercado que está em franca aceleração pode explicar alguma da disparidade de valores encontrados por quem está actualmente a procura de uma casa para arrendar. Estar a comparar medianas relativas a 2017 no primeiro mês de 2019 devolverá sempre resultados desajustados.
Quando divulgou, em Março do ano passado, a primeira publicação, o INE referiu que estes indicadores teriam uma periodicidade “pelo menos anual”, pelo que seria expectável que no próximo mês de Março saíssem as estatísticas relativas a 2018. Mas, confirmou ao PÚBLICO fonte oficial do organismo de estatísticas, o INE pretende passar a divulgar estes dados com periodicidade semestral. “[O mês de] Março de 2019 será assim o primeiro momento de disponibilização, numa base semestral, das estatísticas das rendas da habitação ao nível local, seguindo-se a divulgação prevista para Outubro de 2019 relativa ao 1º semestre de 2019”, esclareceu ao PÚBLICO o INE. E acrescentou que na difusão do 2º semestre de 2018, se trabalharão dados relativos aos 12 meses de 2018 - e, por isso, directamente comparáveis com a divulgação referente ao ano de 2017, efectuada a 21 de Março de 2018”.
Luís Lima, presidente da Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária de Portugal (APEMIP), disse estar muito preocupado com a forma como vai funcionar o mercado de arrendamento acessível, porque entende que ele é uma necessidade sentida por todos. “As pessoas entram pelas mediadoras dentro a perguntar onde é possível encontrar rendas a preços que consigam pagar. E o problema é que não há oferta. Essa é a razão por que os preços continuam a aumentar”, diz o presidente da APEMIP. Deste modo, ninguém encontra, sequer, casas para arrendar aos preços medianos por metro quadrado apontados pelo INE.
De acordo com os dados divulgados pela Autoridade Tributária e Aduaneira, só no ano de 2017 o mercado de arrendamento encolheu 16% face ao ano de 2016, e houve menos 24.477 senhorios a emitirem recibos de rendas.
“Temos um problema de oferta para resolver e essa tem de ser a prioridade”, insiste Luís Lima, que não quer - “ainda” - fazer nenhuma critica ao mercado das rendas acessíveis porque ainda não percebeu com clareza como vai funcionar. “Pedimos esclarecimentos à secretária de Estado que vai ter a amabilidade de nos receber. Até lá estamos todos na expectativa”, terminou
Como vai funcionar?
A criação do arrendamento acessível tem vindo a ser uma das principais bandeiras do Governo em matéria da habitação, defendendo a possibilidade de conceder benefícios fiscais aos senhorios que coloquem casas no mercado de arrendamento a preços 20% abaixo do valor de mercado. Entretanto, este tem sido um edifício legislativo difícil de começar a construir.
Primeiro, porque não havia estatísticas oficiais a acompanhar o valor das rendas - e foi esse o trabalho que o INE começou a fazer. Segundo, porque o Governo teve dificuldades em conseguir apoio parlamentar (mesmo junto dos partidos que sustentam a actual maioria) para atribuir benefícios fiscais neste sector. Os proprietários que coloquem os seus imóveis no mercado do arrendamento habitacional a preços mais baixos ficarão isentos de IRS sobre os rendimentos prediais que obtenham e terão uma redução de 50% no IMI. Para o efeito, considera-se como renda acessível aquela que for 20% inferior ao valor de referência de mercado.
A lei 2/2019 foi publicada a 9 de Janeiro e dá ao Governo 90 dias para “aprovar um regime especial de tributação dos rendimentos prediais resultantes de contratos de arrendamento ou subarrendamento habitacional enquadrados no Programa de Arrendamento Acessível, com vista à disponibilização aos agregados familiares de habitação para arrendamento a preços reduzidos, a disponibilizar de acordo com uma taxa de esforço comportável”.
A parte mais fácil deverá ser a publicação do decreto. A mais difícil será o arranque da plataforma que vai permitir operacionalizar este programa. Será através de uma plataforma electrónica, gerida pelo Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), que os proprietários anunciarão a intenção de colocar as suas habitações neste mercado, e que os candidatos a inquilinos disponibilizarão as suas necessidades e situação financeira. E é do casamento destas duas vontades que poderão surgir os primeiros contratos de arrendamento assinados sob este regime. Ainda não há data prevista para o seu arranque.