Haverá vida sob uma camada de gelo com mil metros de espessura?

Uma equipa de cientistas dos Estados Unidos levou a cabo uma investigação no lago Mercer, um dos mais profundos lagos escondidos por baixo do gelo que cobre a Antárctida, e encontraram vestígios de crustáceos e de um tardígrado.

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O furo feito na camada de gelo para alcançar as águas do lago Mercer Kathy Kasic/SALSA Education & Outreach

Sob as camadas de gelo que cobrem a Antárctida há muitos segredos por descobrir. Uma expedição recente ao continente gelado, liderada por uma equipa dos Estados Unidos com cerca de 50 membros, revelou algo surpreendente: sinais de vida nas águas do lago Mercer, por baixo de uma camada de gelo com 1068 metros de espessura, a cerca de 600 quilómetros do Pólo Sul.

Dos 379 lagos que existem por baixo da superfície gelada na Antárctida (muitos deles ligados entre si), o Mercer será um dos maiores alguma vez explorado em detalhe e tem algumas parecenças com os lagos de Marte e com os oceanos das luas de Júpiter e Saturno. Dizem até os investigadores norte-americanos que participaram nesta expedição, citados pelo jornal El País, que quando chegaram ao fundo do lago Mercer foi “como aterrar num outro planeta”. 

Depois de recolherem, a 30 de Dezembro de 2018, amostras da água e de sedimentos do fundo do lago – através de um equipamento de perfuração que liberta água quente para derreter a camada de gelo, criando um furo com 60 centímetros de diâmetro –, os cientistas analisaram-nas ao microscópio e encontraram vestígios de algas fotossintéticas que terão existido há milhões de anos.

Mas encontraram também carcaças de pequenos animais mais recentes, nomeadamente crustáceos (incluindo uma de um animal semelhante a um camarão ainda com as patas presas à carapaça e fragmentos de um outro crustáceo cobertos por uma espécie de penugem) e de um tardígrado, um invertebrado aquático também conhecido como ursinho-de-água. Além disso, o que inicialmente pareciam vermes eram, na verdade, vestígios de uma planta ou de um fungo que outrora terão vivido em terra. 

A descoberta foi "totalmente inesperada", afirmou à revista Nature David Harwood, micro-paleontologista da Universidade de Nebraska-Lincoln (EUA) que fez parte da expedição Acesso Científico aos Lagos Antárcticos Subglaciais (SALSA na sigla em inglês), financiada pela Fundação Nacional de Ciências dos Estados Unidos. "Acreditamos que este lago e todos os organismos estiveram completamente isolados do exterior durante pelo menos 100.000 anos", acrescentou ao El País John Priscu, líder da expedição e investigador da Universidade Estadual de Montana (EUA).

Como lá chegaram?

Embora os investigadores não descartem a possibilidade de os crustáceos terem habitado em águas salgadas, a equipa acredita que estas pequenas criaturas podem ter vivido em lagoas e riachos nas montanhas da Antárctida, a cerca de 50 quilómetros do lago Mercer, durante períodos mais quentes em que os glaciares recuaram (há cerca de dez ou 120 mil anos) e que, posteriormente, quando o clima arrefeceu e os rios ficaram cobertos de gelo, foram transportados pelas correntes dos rios subglaciais até àquele local.

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O equipamento utilizado na perfuração da camada de gelo para retirar amostras do lago Mercer Billy Collins/SALSA Education & Outreach

Outra hipótese é que aquelas criaturas tenham ficado presas no fundo de um glaciar que as foi arrastando até ali. Algo surpreendente é que estes organismos "não estão mortos assim há tanto tempo", explica Byron Adams, um outro investigador norte-americano que, apesar de não fazer parte da expedição, foi convidado a analisar os vestígios.

Sobre a possibilidade de existirem animais ainda vivos naquelas águas gélidas e escuras, explica David Harwood à Nature que as amostras da água do lago continham uma quantidade suficiente de oxigénio para suportar vida e estavam repletas de bactérias (que eventualmente poderiam servir de alimento a pequenos animais).

Porém, a falta de luz solar faz com que as bactérias (em vez de extraírem a energia do sol para fazer a fotossíntese) se alimentem de minerais das rochas ou de matéria orgânica, o que poderia impossibilitar essas mesmas bactérias de crescerem ao ritmo necessário para poderem servir de alimento. Já Byron Adams acredita que ainda seja possível encontrar criaturas vivas naquele lago coberto por uma espessa camada de gelo e acrescenta que a recente descoberta mostra que a biologia pode ajudar a desvendar um pouco mais sobre a história da Antárctida.

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A estrutura montada no local da expedição, a 600 quilómetros do Pólo Sul Billy Collins/SALSA Education & Outreach

O diário espanhol El País diz ainda que as águas do lago estão meio grau abaixo de zero, mas que a pressão no seu interior é cerca de 100 vezes maior do que na superfície, o que permite que a água permaneça em estado líquido e, junto com os sedimentos encontrados no fundo do lago, se crie ali um ambiente propício à existência de vida. 

Em Janeiro deste ano, John Priscu mostrou-se reticente quanto à descoberta, ao admitir à revista Nature que os vestígios encontrados poderiam ter ali chegado através de material contaminado. No entanto, a equipa esterilizou o equipamento e voltou a recolher, pela segunda vez, amostras do lago Mercer que mostraram novamente vestígios de crustáceos e outros organismos. 

Dúvidas tiradas e agora de regresso aos Estados Unidos, a equipa de cientistas irá, durante os próximos meses, tentar determinar a idade destes vestígios e sequenciar o seu ADN, na esperança de descobrirem se os crustáceos pertenciam a espécies marinhas ou de água doce e se viviam em ambientes iluminados pelo sol ou se conseguiram sobreviver nas águas subglaciais.

O lago Mercer foi descoberto há cerca de uma década mas, até agora, os cientistas só tinham conseguido recolher informação sobre esta massa de água através de imagens de satélite e outras técnicas de pesquisa remota. Por baixo da camada de gelo, o lago tem cerca de 15 metros de profundidade e é composto por água doce. 

Adiantam ainda os cientistas ouvidos pelo El País que o estudo do ciclo hidrológico sob as camadas de gelo da Antárctida poderá ser crucial para prever os efeitos das alterações climáticas. Acrescenta John Priscu, ao mesmo jornal espanhol, que estas expedições "mudam a nossa percepção sobre o quinto maior continente" que, na visão do investigador, não pode continuar a ser visto "como um bloco enorme e inofensivo de gelo", sob o qual se encontra uma massa de água que "tem um papel ao nível global".

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