A esquerda à esquerda é a casa do Bloco
Catarina Martins considerou a classificação do BE como "extrema-esquerda" um "insulto". Hoje, à direita, o Governo já não é atacado como "extremista", mas apresentado como de "esquerdas unidas" ou "esquerdas encostadas".
Da espuma da informação e da exiguidade de uma resposta, nasceu na semana passada um pequeno imbróglio semântico e político. Não fora a crise do PSD e os agentes políticos, analistas e comentadores andariam de bússola na mão ou do mais moderno GPS no telemóvel a percorrerem os campos partidários. O PÚBLICO ouviu especialistas que apontam para a localização do Bloco de Esquerda na floresta ideológica: a esquerda à esquerda é a sua casa.
“A extrema-esquerda desenvolveu-se em finais do século XIX e no século XX entre os que consideravam que a transformação social só podia ser feita por via revolucionária, envolvendo luta armada e violência, e não respeitando as constituições e a democracia, tal como a extrema-direita”, explica o sociólogo Boaventura Sousa Santos, director do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
“A maior parte do movimento de extrema-esquerda que, no fundamental, nasceu nos anos 60 do século passado, correspondia à tripla dimensão de uma interpretação revolucionária do marxismo, de uma prática política de esquerda revolucionária, frente à integração da maior parte dos partidos comunistas na ordem democrática e no reformismo”, refere António Costa Pinto, politólogo e professor do Instituto de Ciências Sociais: “O terceiro elemento é a emergência de novos actores sociais na luta anticapitalista, como os estudantes, não apenas na crítica à economia do mercado mas ao capitalismo.”
Estas precisões decorrem de uma entrevista ao Observador, no dia 15, na qual a coordenadora do Bloco considerou o epíteto extrema-esquerda, em relação ao BE, como um insulto. Catarina Martins afirmou preferir a designação esquerda radical.
“Na Ciência Política, depois da queda do muro de Berlim, há uma distinção entre extrema-esquerda e a esquerda radical”, pondera André Freire, do departamento de Ciência Política e de Políticas Públicas, do ISCTE, e autor de A Esquerda Radical em Portugal e na Europa. “A extrema-esquerda”, prossegue André Freire, “seria a esquerda comunista não renovada, ortodoxa, ligada à URSS e que nunca fez uma crítica à realidade soviética. Os outros, como o BE, formados a partir da Política XXI, cisão do PCP de, entre outros, Miguel Portas, do PSR e dos maoístas, fizeram uma crítica à herança totalitária.”
Boaventura Sousa Santos aprofunda a divisão. “Faz sentido falar de esquerda radical para distinguir da esquerda mais moderada, mas deixou de haver uma esquerda extra-institucional, que não aceita as instituições”, salienta. Em São Bento todas as esquerdas – PS, BE, PCP – estão no Parlamento, nas instituições e apoiam o Governo de António Costa. “O elemento radical não me diz muito”, confessa o sociólogo de Coimbra. “A designação mais feliz seria a esquerda à esquerda”, concluiu. Tendo como meridiano o PS.
“O crescimento do Bloco vem da desilusão das políticas do PS, sobretudo aquando do referendo do aborto, e até há pouco tempo os militantes estavam mais à esquerda do que os dirigentes”, recorda Costa Pinto. “Havia uma componente revolucionária que foi assumindo um carácter de esquerda socialista democrática”, descreve. “No núcleo dirigente, a marca do marxismo, como a do anticapitalismo, é muito diminuta, o BE foi-se transformando num partido cada vez mais eleitoral e com uma pequena ligação aos movimentos sociais”, conclui.
“O extremismo tem a conotação de menor propensão para o compromisso com os sociais-democratas, a esquerda radical está mais disposta”, observa André Freire. Desde os acordos à esquerda de Novembro de 2015, esta definição ganhou a densidade de um apoio a um executivo minoritário.
É certo que, quando o BE entrou no Parlamento, em 1999, sentou-se no hemiciclo à esquerda do PCP e por lá ficou. Mas, na XI Convenção de Novembro passado, a moção aprovada de Catarina Martins, Pedro Filipe Soares e Marisa Matias, assumiu que o Bloco quer ser força de Governo em 2019, distanciou-se da posição extremista e afirmou a disponibilidade para novo compromisso.
“O Bloco nunca se chamou extrema-esquerda. São a direita e o PS que têm muita vantagem neste debate de rasteira”, sintetizou, ao PÚBLICO, Francisco Louçã. Um dos mais reconhecidos fundadores e primeiro deputado do partido, Louçã considera irrelevante essa questão. “A entrevista [de Catarina Martins] é interessante pelas questões de Saúde e Educação.
"A resposta de Catarina Martins foi muito bem formulada, é um dado adquirido e pacífico que não somos da extrema-esquerda mas da esquerda radical", considerou, por seu lado, Luís Fazenda, outro dos fundadores do Bloco vindo da UDP [União Democrática Popular]. "Nem a UDP se considerou de extrema-esquerda", sublinhou, referindo-se à representação parlamentar que teve e à presença nas autarquias
Com o apoio ao executivo de Costa, a direita que assim perdeu o poder, sobretudo o PSD o partido mais votado nas eleições de 2015, disparou a sua artilharia contra o Governo da extrema-esquerda. No tradicional simplismo dos slogans, o CDS de Assunção Cristas foi mais engenhoso: “esquerdas unidas” ou “esquerdas encostadas” têm sido os epítetos utilizados.