Toalhas e guardanapos, a forma como “vestimos a mesa” deu um livro
Parece um assunto doméstico, mas a história dos tecidos que colocamos entre a mesa e os pratos cruza-se com a história da economia e da sociedade. Ana Marques Pereira seguiu as pistas dos panos que, ao longo dos séculos, têm vestido as mesas.
Falamos muito do que se coloca em cima da mesa – da comida, em primeiro lugar, mas também, e cada vez mais no universo do fine dining, da louça, dos talheres. Há, no entanto, um elemento que tende a ficar esquecido: as toalhas.
Juntamente com os guardanapos, as tolhas são hoje os parentes pobres em muitas mesas. Muitos restaurantes optaram mesmo por prescindir delas, preferindo o contacto directo com a madeira (ou outro material). E, em casa, as boas toalhas geralmente só saem das gavetas em dias de festa.
Foi precisamente para as modas que, ao longo dos tempos, ditaram a forma como se “veste a mesa” que a investigadora na área da alimentação Ana Marques Pereira se propôs olhar. O resultado é Vestir a Mesa, um livro de peso, com uma recolha de imagens excepcional e um trabalho de pesquisa como nunca antes tinha sido feito sobre este tema que, sendo do quotidiano, vai da arte à indústria.
Foi no século XIV, escreve, “que se codificou a utilização da toalha, associada à necessidade de encobrir os cavaletes sobre os quais assentava o tampo das mesas”. Começou por ser de grande dimensão, “excedendo em muito o tamanho da mesa e sendo dobrada em dois para formar o doublier”. O doublier era uma espécie de antepassado do guardanapo, “uma toalha simples, habitualmente de linho branco, colocada dobrada sobre a mesa, com a prega oposta ao local do comensal, de modo a permitir-lhe limpar as mãos e a boca nas bordas […]”.
No início, explica a autora, as toalhas de mesa foram muito influenciadas pelas práticas da igreja. “As primeiras toalhas de mesa eram muito semelhantes às toalhas de altar usadas nas cerimónias litúrgicas e o mesmo se poderia dizer das toalhas de mãos que, numa fase inicial, se confundem com o guardanapo ou a mappula (manustérgio) ou toalhinha usada pelo sacerdote.” A diferença entre umas e outras é “subtil”, distinguindo-se apenas pelo tamanho.
A toalha tem desde esse início um “carácter ritual” e funciona como “um espelho do extracto social de quem as ostentava”. Vestida desta forma, a mesa transmitia mensagens, diz Ana Marques Pereira. Mesmo havendo uma toalha grande, por vezes colocava-se outra mais pequena frente à pessoa mais importante, precisamente para sublinhar essa diferença de estatuto.
Se, quando pensamos em toalhas de mesa, pensamos geralmente em panos brancos, de linho ou algodão, eventualmente bordados, houve tempos e locais onde as mesas foram cobertas de forma bem mais pesada. Veja-se o exemplo dos guadamecis, “um tipo de tapeçaria feito em couro pintado a cores e dourado [não era usado ouro, mas sim óleo sobre prata] que antigamente teve vasta utilização decorativa, sobretudo em paredes e móveis”.
Ana Marques Pereira refere autores segundo os quais a introdução do uso de guadamencis sobre as mesas em Córdova, no século IX, se deve ao poeta e músico Ziryab, “figura fascinante a que se atribuem várias inovações”.
Mais tarde, já no século XVI, “era frequente em Espanha fazer mesas de menor valor que depois eram forradas com telas ricas ou guadamecil”. Embora em muito menor escala, a moda chegou também a Portugal, possivelmente mais para a decoração de paredes. Escreve a autora que “a produção portuguesa também teve um papel significativo no fabrico dos guadamecis, que, tal como a espanhola, derivou do legado islâmico deixado em terras peninsulares.”
Novas formas de pôr a mesa
O século XVIII foi o da expansão do uso das toalhas de linho adamascadas, sendo em Portugal mais usado o termo “atoalhado”, tanto para guardanapos como para toalhas. No século seguinte, continua a autora, “a vida social à mesa intensificou-se, […] generalizando-se os convites para jantares, sobretudo entre a classe burguesa mais endinheirada ligada à indústria e ao comércio”.
Surgem então novas regras e novas formas de pôr a mesa. “O centro de mesa vai apresentar-se mais despojado e os serviços de copos completos passaram a ocupar os seus lugares, frente aos pratos”. Contudo, nota Ana Marques Pereira, na primeira metade do século XIX as toalhas “vão manter características idênticas às dos séculos anteriores, tanto no que respeitava a cor, mantendo-se a preferência pela alvura, como aos materiais”.
É a partir daí, e sobretudo do século XX, que a preocupação com o “vestir a mesa” se alarga às classes mais populares. Aparecem então toalhas bordadas com cores, antecipando o que seria a grande explosão da cor nas cozinhas já nos anos 60 do século XX.
A tendência para motivos mais alegres já vinha do final da I Guerra Mundial, período no qual se instalou um maior optimismo. Já com a II Guerra, “os tecidos de mesa perderam qualidade e quando apresentavam cores, estas eram pouco duradouras”. Nota a autora que “esta era uma preocupação das donas de casa manifestada em 1943 por Miquelina Martins que escrevia no seu livro que ‘na roupa de mesa de cor se deve preferir o tipo riscado, xadrez ou quadriculado ao estampado, pois este último género de tecido é muito menos resistente à lavagem.”
Ao estudar este tema, Ana Marques Pereira apercebeu-se de como uma questão aparentemente simples como a do que se coloca em cima de uma mesa se cruza com tantos aspectos diferentes da vida, da sociedade e da história. Não havendo, contudo, trabalhos publicados sobre o assunto em Portugal, começou a sua pesquisa nos arquivos, em busca de referências, que surgem nos mais diversos tipos de documentos.
Também os objectos – de que é coleccionadora – ajudam a compreender muitas coisas. Das “caixas de costura aos agulheiros, passando pelos bastidores” há, por exemplo, uma infinidade de peças ligadas às rendas e bordados, uma actividade que esteve sempre muito ligada ao universo feminino e a uma certa intimidade, aos momentos em que “as mulheres se juntam para costurar e falar”. Curiosamente, quando, nos séculos XVI e XVII, esta passa a ser uma actividade menos doméstica, “são sobretudo os homens que exercem a profissão”.
Outra das fontes fundamentais para esta pesquisa é a pintura – o livro tem muitas reproduções de quadros de diferentes épocas históricas com cenas variadas. O que a autora fez – e o que nos leva a fazer também – é olhar para cada quadro deixando o tema principal em segundo plano e prestando particular atenção às toalhas que cobrem as mesas, à forma como estão vincadas, aos bordados que têm.
“É importante pensarmos como as coisas vão mudando ao longo dos séculos”, diz. “Por exemplo, no século XVII existiam as prensas de madeira para fazer as pregas. Mais tarde, nos séculos XIX e XX, o luxo passa a ser a toalha lisa, porque já existem os ferros de passar.”
Os guardanapos também têm uma história curiosa. Segundo Ana Marques Pereira, os primeiros foram de papel e eram usados na China na dinastia Tang (618-907 d.C). Chamavam-se chich pha e serviam para segurar as chávenas de chá, que não tinham asa. Já em Esparta, na Grécia antiga, a prática era muito diferente: limpava-se a boca com um pedaço de massa que se rolava nas mãos.
Em Portugal, não é possível definir exactamente o momento em que se começou a usar guardanapo, mas a autora encontrou um documento datado de 1497 no qual existe aquela que acredita ser a primeira referência a esta peça, aí chamada “guardanapos de boca”.
Ana Marques Pereira lamenta que hoje estejamos a assistir ao desaparecimento das toalhas de mesa dos restaurantes – “e não se trata de uma moda, é uma medida para poupar”, sublinha. É por isso que, tal como fez com os licores (é autora, entre outros, do livro Licores de Portugal), quis olhar para as toalhas e chamar a atenção para artes que correm também o risco de desaparecer. “O que me interessa é pôr as pessoas a pensar nas coisas. E, neste caso, mostrar que não se trata de um tema feminino. Este não é um livro de modas e bordados.”
Vestir a Mesa é uma edição de autor, feita em crowdfunding. Pode ser comprado em Guimarães (Paço Ducal e Museu de Alberto Sampaio), em Lisboa na Livraria Ferin, através do Wook e do blogue de Ana Marques Pereira, Garfadas Online.