Há três bibliotecas portuguesas entre as mais bonitas do mundo e uma delas é no Brasil
Mafra, Coimbra, Rio de Janeiro. Uma biblioteca que começou por servir um convento, outra que é universitária mas parece palaciana, e por último, a que nasceu como gabinete de leitura a propósito de um poeta português. E estão as três em The World’s Most Beautiful Libraries, uma edição que dá primazia às fotografias do italiano Massimo Listri. Para folhear com cuidado, que o livro pesa.
Sempre que os jornais internacionais publicam listas das mais belas bibliotecas do mundo, e fazem-no com frequência, é certo que nesse clube altamente exclusivo há pelo menos um membro português. E logo entre os primeiros. Desta vez, e ainda que o pretexto do mais recente ranking seja um livro — The World’s Most Beautiful Libraries (Taschen, 2018), um coffee table book que convida à viagem e que é em si mesmo um destino para bibliófilos — há três, e um deles “mora” no Brasil: o Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, uma instituição que recentemente passou por grandes dificuldades e cuja actividade se deve hoje em boa parte a portugueses e lusodescendentes; a Biblioteca Joanina, em Coimbra; e a do palácio-convento de Mafra.
Este volume de 550 páginas é uma edição trilingue (inglês, alemão e francês) em que a fotografia do florentino Massimo Listri assume todo o protagonismo, relegando para segundo plano os textos de Georg Ruppelt, director de bibliotecas e autor de dezenas de monografias em torno da história do livro e da cultura, e de Elisabeth Sladek, uma académica que se especializou em arte e arquitectura do barroco.
Listri, que se tem vindo a dedicar à fotografia de arquitectura, sobretudo a que regista os interiores luxuosos de palácios e villas, e publicou já 70 livros, parece ter encontrado no universo das mais antigas e notáveis bibliotecas dos continentes europeu e americano um desafio à altura da sua experiência. O resultado do seu trabalho, associado aos textos breves de Ruppelt e Sladek (há um pequeno artigo para cada biblioteca), pode ver-se neste volume que apresenta ao leitor 55 espaços, alguns deles com áreas de acesso muitíssimo restrito, como a Biblioteca Apostólica Vaticana, na cidade dos Papas, fundada por volta de 1450 (o actual edifício é do final do século XVI) e paradigma da associação destas instituições à investigação e à produção de conhecimento ao longo dos séculos.
Com cerca de 2,4 milhões de itens à sua guarda, entre eles 1,8 milhões de manuscritos e livros impressos muito raros, é desde o ano passado dirigida pelo arcebispo português José Tolentino de Mendonça e em The World’s Most Beautiful Libraries é a primeira numa lista de 17 bibliotecas de Itália, de longe e naturalmente o país que mais atrai a objectiva de Massimo Listri. Nápoles, Florença, Roma e Veneza são outras das cidades de paragem obrigatória neste livro que abre precisamente com o capítulo voltado para a Europa do Sul, onde se inserem Portugal e Espanha, esta última com o Arquivo Geral das Índias (Sevilha) e a biblioteca do Mosteiro do Escorial (Madrid).
Nos capítulos seguintes, encontramos instituições dispersas por mais 13 países, com a Alemanha e a Áustria a mostrarem de que forma souberam fazer da construção de bibliotecas de ambientes luxuosos e com ambiciosos acervos um espelho da sua prosperidade e do compromisso com o saber de alguns dos seus principais mosteiros e abadias.
Sem limites
A mais antiga das bibliotecas fotografadas, a da abadia beneditina de São Galo, na Suíça, foi construída em meados do século VIII, embora já antes houvesse “colecções de livros” na Europa, escreve Georg Ruppelt, num texto introdutório a que deu o título de Memória do Mundo. Memória do Mundo é precisamente o nome do programa da UNESCO (sigla em inglês da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) em que figuram livros, manuscritos e outros documentos únicos que são testemunhas de importantes momentos históricos ou reflectem o génio criador do homem, hoje à guarda de prestigiados museus, arquivos e bibliotecas internacionais, e alguns deles referidos ou reproduzidos neste volume.
“Por princípio e idealmente, as grandes bibliotecas não reconhecem limites, a não ser os exigidos pelo Estado, pela infra-estrutura que a acolhe ou pelo seu propósito”, continua este historiador. “As bibliotecas no seu todo são uma maravilha — uma maravilha porque apresentam, num espaço relativamente pequeno, o mundo como ele é, como ele foi e como poderá vir a ser, assim como o que deveria ser. As bibliotecas são repositórios tanto dos factos do mundo real como dos dos muitos mundos alternativos da imaginação. E é por isso que conservam a mente humana em toda a sua riqueza e beleza, em toda a sua perfeição e crueldade, em tudo o que tem de luz e de trevas.”
A biblioteca de investigação do Rijksmuseum (Amesterdão), a Morgan (Nova Iorque), a do Trinitty College (Dublin), a do Palácio de Chantilly (Chantilly), a do Convento de São Francisco de Assis (Lima) e a da Abadia de Metten, na Baviera, merecem destaque neste volume que agora folheamos para ver o que nele se diz e mostra sobre as três portuguesas.
Rio, Coimbra, Mafra
O Real Gabinete Português de Leitura fica na Rua Luís de Camões, no centro do Rio de Janeiro. A sua construção, aliás, começou em 1880 precisamente para assinalar os 300 anos da morte do poeta de Os Lusíadas e deveu-se à iniciativa de 43 portugueses imigrantes, muitos deles homens de negócios, outros refugiados políticos, explica Elisabeth Sladek. O seu interior, onde hoje está a maior colecção de livros portugueses fora de Portugal, é uma homenagem ao gótico tardio. O tecto e as estantes deste gabinete de leitura que tem um gigantesco pé direito — os livros distribuem-se por três níveis — contrastam com as paredes de tom verde e a fachada que Listri não fotografa evoca o Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa.
Muito diferente no aspecto e no acervo das duas bibliotecas nacionais deste The World’s Most Beautiful Libraries, o gabinete e os seus mais de 350 mil volumes continuam à guarda de instituições ligadas à diáspora, como a Escola Portuguesa do Rio de Janeiro, e nele não se sente tanto o peso da história como em Mafra ou em Coimbra.
A primeira pedra da Biblioteca Joanina, construída a mando de D. João V (1689-1750), foi lançada a 17 de Julho de 1717, dando-se a obra como praticamente concluída 11 anos depois. Ainda que seja uma biblioteca implantada numa universidade, o seu ambiente — as estantes de madeira escura ricamente decoradas em dourados, o chão de pedra com padrão geométrico, os arcos sumptuosos que dividem os três espaços onde estão guardados 250 mil volumes, e os tectos pintados — é o de uma biblioteca palaciana, sendo esta atmosfera de requinte e representação do poder real reforçada pelo retrato do monarca que tem lugar de destaque ao fundo do corredor central que a atravessa, executado por Domenico Duprà, pintor da corte.
A do palácio-convento de Mafra, desenhada pelo arquitecto Manuel Caetano de Sousa e completada em 1771, “é considerada uma das mais magníficas bibliotecas do rococó em todo o mundo” e mantém “intacta a sua aparência histórica”, começa por escrever Elisabeth Sladek, lembrando em seguida que, tal como a de Coimbra, é um projecto de D. João V que só é dado por terminado no reinado do seu filho, D. José I. À semelhança da Joanina, acrescentamos nós, também ela tem uma colónia residente de morcegos que é uma ajuda preciosa no combate às traças e a outros insectos que atacam o papel e a madeira.
Entre os seus fundos compostos por 36 mil volumes Sladek destaca as partituras originais para o “famoso conjunto de seis órgãos da basílica do palácio”, único no mundo, e a bula papal de 1745, assinada por Bento XIV, que permite a esta biblioteca ter em três das suas estantes de um branco acinzentado com alguns apontamentos de dourado, hoje já muito desmaiados, uma série de obras que se encontravam no índex de livros proibidos pela Santa Sé. Muitos destes títulos arrumados sob o tema “Miscelânia vária” estão ligados às chamadas ciências ocultas, como a alquimia, e à astronomia, como os de Giordano Bruno, filósofo e teólogo italiano condenado à fogueira pela Inquisição, acusado de heresia por defender, entre outras coisas, que a Terra girava à volta do sol.
Folheia-se este livro de fotografia de Massimo Listri e fica-se com a sensação de que o impacto cenográfico da biblioteca deste palácio-convento dos arredores de Lisboa é absolutamente singular. Talvez porque nela a luz parece ter uma importância maior e o contraste entre as paredes e tectos, ambos claros, e o chão em pedra policromado surpreende quem ali chega pela primeira vez e até mesmo quem ali regressa.
Mário Pereira, director deste monumento que quer ser património mundial, já se habituou a ver a biblioteca do convento na lista das mais importantes ou das mais bonitas do mundo. Gosta de sublinhar, no entanto, que é a conjugação da “estética” com a “qualidade do acervo” que a torna verdadeiramente especial. “Tornou-se comum para nós ver a biblioteca entre as mais belas do mundo, sobretudo na imprensa anglo-saxónica, e quase sempre nas quatro ou cinco primeiras. É claro que é bom estar entre os mais bonitos, mas aqui o que conta é esta simbiose quase perfeita entre o contentor e o conteúdo”, diz, explicando em seguida: “Se o espaço é bonito ou não, se merece estar entre os mais apelativos ou não, é subjectivo, mas a qualidade do seu acervo é um dado absolutamente objectivo. Esta biblioteca é, sem sombra de dúvida, uma das mais importantes do mundo no que toca a obras impressas entre o século XV e a primeira metade do XVIII.”
O estudo que a Universidade de Évora tem vindo a fazer dos milhares de volumes que a compõem – Tiago Miranda, investigador, estuda há anos as marcas que apresentam para perceber de onde vieram os livros desta que é “a mais joanina das bibliotecas joaninas”, segundo Mário Pereira – permite conhecer hoje o percurso de algumas das obras mais importantes das suas estantes.
Para o director, a particularidade da biblioteca de Mafra é a de ser uma caixa que, na sua austeridade própria de "casa da livraria" conventual, dá o centro do palco aos livros. “O aspecto da nossa biblioteca, que começou por ser a de uma casa franciscana [mais tarde passou por outras ordens religiosas e serviu até o Real Colégio que chegou a funcionar neste palácio-convento], não tem nada a ver com o do esplendor do ouro das bibliotecas do centro da Europa que vêm neste volume, nem mesmo com o de Coimbra. Aqui há uma austeridade sem dourados, também porque é feita numa altura em que a corte tem já muito menos dinheiro. Os pormenores decorativos requintados também existem, mas são mais discretos”, acrescenta Mário Pereira. “Aqui entramos e vemos logo os livros. Noutras bibliotecas as esculturas, as pinturas e os dourados têm uma presença tão forte que acabam por nos fazer andar à procura deles."