Uma rolha sobre o Tejo
Será um gesto de elementar justiça que a ponte de Vila Franca-a tal que é livre, que teve portagens e deixou de ter-sirva para homenagear quem projetou a nossa democracia no futuro.
A ponte de Vila Franca de Xira fez 67 anos no passado mês de Dezembro. Aos leitores mais familiarizados com esta ponte deve ocorrer a imagem dos seus cinco arcos metálicos, que se abrem sobre a lezíria ribatejana e a vastidão do mar da palha. O estuário do Tejo não começa aqui, mas é sobre esta ponte que vemos como o rio se alarga para fazer um mar interior que separa as serras da península de Lisboa da vasta planície que se estende para o Alentejo. Não é por acaso que o contorno desta ponte é icónico. Entre 1951-1966 foi a única travessia rodoviária do Tejo a jusante de Santarém, e é desde 1979 a única ponte da região de Lisboa sem portagens. Ainda hoje, aqueles cinco arcos de aço representam uma das aspirações centrais da vida moderna: a liberdade de circulação para trabalhar e viajar, independentemente dos recursos de cada um. Uma ponte como a de Vila Franca é um nó muito simples que une duas margens do país e que continua a ligar a imaginação dos portugueses e portuguesas a um futuro melhor, mais livre.
Os leitores menos familiarizados com a ponte terão dificuldades em lembrar-se que foi batizada de “Marechal Carmona”. António Óscar de Fragoso Carmona (1869-1951) foi oficial de cavalaria e fez uma boa parte da sua carreira militar durante a primeira República, que ficou conhecida pela instabilidade política e social, por sucessivos governos falhados e intentonas militares. Para um homem ambicioso e privilegiado como Carmona, o contexto da primeira República foi um mar de oportunidades. Carmona tinha outra vantagem: intuição política.
Nem sempre os militares têm boa intuição política, mas Carmona esteve sempre no local certo à hora certa e soube valer-se disso. Foi franco-mação, deixando a maçonaria quando esta se tornou inconveniente. Evitou as trincheiras de África e da Flandres entre 1914 e 1918, mas chegou a ministro da guerra na década de 1920. Foi também por esses anos que se aproximou dos setores mais conservadores do exército, acabando por embarcar no movimento que instaurou a ditadura militar em 1926. O habilidoso Carmona conseguiu afastar o líder do movimento, Manuel Gomes da Costa, e tornar-se presidente da República poucos meses depois do golpe de estado. Ficou na cadeira da presidência até morrer, quase 25 anos depois.
O marechal que nunca pisou um campo de batalha foi também a rolha mais leve que flutuou na política nacional. Enquanto presidente, encorajou a ascensão fulminante de António de Oliveira Salazar ao poder e a consolidação do seu modelo de ditadura de cariz fascista. A grande habilidade de Salazar consistiu no trabalho político que uniu diferentes setores conservadores da sociedade em torno de um projeto de estado corporativo. Essa costura incluiu os monárquicos tradicionais, republicanos conservadores, o jovem movimento fascista, grandes proprietários, a hierarquia católica e os militares. No fundo, todas a varas que formaram o feixe do fascismo português. Como explicou o historiador José Costa, Carmona foi uma figura essencial para agarrar esse feixe. A rede social de Carmona, consolidada pela sua ardileza, garantiu a Salazar que o exército não derrubaria a ditadura.
A atribuição do nome de Carmona àquela que foi uma das grandes obras públicas do regime não foi meramente memorialística. Quando foi inaugurada, em Dezembro de 1951, tinham passado pouco mais de oito meses desde a sua morte. Na verdade, materializou os limites da ação política que Salazar esperava da função presidencial: servir de ponte entre diferentes interesses, consolidar a unidade que sustentava o regime. Uma metáfora bastante literal para homens habituados a flutuar à tona das circunstâncias políticas.
Estes parágrafos vêm a propósito das recentes declarações do vereador vila-franquense, Carlos Patrão, a propósito da manutenção do nome da ponte. O vereador aproveitou a aproximação do aniversário da ponte para questionar este anacronismo. Como é possível que quase 50 anos depois da Revolução de Abril se continue a celebrar um dos principais fautores da ditadura? Alberto Mesquita, presidente da câmara, discorda que se mude o nome e se façam “ajustes de contas”.
Esta discussão não deve ser vista como inoportuna no contexto em que vivemos. A toponímia-nomes das ruas e lugares-não reflete simplesmente acontecimentos passados. Pelo contrário, reflete os valores da sociedade em que vivemos e projetamos no futuro. A imaginação social e política do nosso tempo está inscrita nos nomes que escolhemos atribuir aos espaços públicos, mas também está naqueles que escolhemos preservar. Nomear uma rua ou uma ponte é uma decisão tão importante como manter ou remover um topónimo antigo. No contexto atual, em que assistimos à emergência de novas formas de autoritarismo e intolerância por toda a Europa, não podemos desperdiçar nenhuma oportunidade para lembrar o que realmente queremos para a nossa sociedade.
Ao contrário do que o presidente Mesquita disse, jamais estivemos tão longe de um possível ajuste de contas. O estado democrático nunca levou a tribunal os responsáveis políticos e institucionais da ditadura, que foram frequentemente reciclados na administração do estado e na vida pública. Irene Flunser Pimentel demonstrou num livro recente que, apesar de o Movimento das Forças Armadas ter procurado criminalizar os membros da polícia política em 1974-1975, o saldo geral ficou marcado pela impunidade.
No entanto, houve um processo mais ou menos generalizado de transformação do espaço público que passou pela remoção de toponímia, estatuária e outros elementos que celebravam a ditadura. É por isso que dificilmente encontraremos o nome de uma rua que recorde Salazar. O próprio Carmona foi celebrado em 1970 por vasto monumento no Campo Grande, em Lisboa, que incluía uma estátua em bronze. A estátua foi removida para o Museu da Cidade depois da revolução, e a restante estrutura acabou por ser demolida. Ao contrário da justiça transicional, este processo foi genuinamente popular. Partiu da iniciativa de cidadãos comuns, dos movimentos sociais e do poder local. A generalidade das portuguesas e portugueses foram rápidos a reconfigurar o espaço público depois de 1974, de acordo com as suas aspirações. Quem cresceu em democracia raramente se lembra que a ponte de Vila Franca é oficialmente designada “Marechal Carmona”, ou que a ponte 25 de Abril um dia se chamou “Salazar”. Apesar de muitos problemas sociais com que ainda nos debatemos, fomos rápidos a extirpar da nossa prática discursiva as referências mais infames do nosso passado recente.
Que a maior rolha do século XX português continue a ser celebrada em público é um anacronismo administrativo, e como tal poderá ser administrativamente resolvido. Quem o fizer irá ao encontro das sensibilidades de quem usa a ponte “Marechal Carmona”, conhecendo-a como ponte de Vila Franca.
Porém, quem assumir esta mudança abrirá duas portas muito importantes. A primeira dessas portas será aberta para o debate que já decorre sobre o legado da ditadura na sociedade portuguesa, e sobre como este continua a ser legitimado através de projetos de memorialização que dominam o espaço público. A memorialização da ditadura está longe de resumir-se à toponímia ou aos monumentos a Salazar ou Carmona. Ela confunde-se com uma paisagem monumental mais vasta, promovida pelo regime salazarista, que celebra o nacionalismo e o colonialismo. Ao contrário do que possamos pensar, essa paisagem continua a ser vivida e a receber novas contribuições. A estátua ao padre António Vieira em Lisboa, ou o proposto museu das “descobertas” ou da “viagem” são dois dos contributos mais recentes. A segunda porta é a oportunidade para homenagear uma pessoa ou um acontecimento que corresponda aos valores da democracia, consagrados na constituição da República. A democracia não consiste apenas nas votações regulares a que estamos habituados. A democracia faz-se todos os dias, nos gestos solidários e nas batalhas por direitos sociais em que tantos de nós estamos envolvidos. Será um gesto de elementar justiça que a ponte de Vila Franca-a tal que é livre, que teve portagens e deixou de ter-sirva para homenagear quem projetou a nossa democracia no futuro.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico