Eles são os “fiéis escudeiros” dos treinadores da I Liga

O que fazem os treinadores adjuntos das equipas do campeonato português? Há perfis muito diferentes entre os 18 técnicos que trabalham longe dos holofotes e mais de metade dos actuais líderes das equipas técnicas já esteve na posição de adjunto de outro treinador.

Foto
Nuno Ferreira Monteiro

“Em Portugal, portanto, o treinador é um técnico que tem de saber um pouco de tudo: dar uma massagem, prestar um primeiro socorro em caso de acidente, entrever no estreante um jogador de futuro, ensinar os principiantes, treinar e educar os jogadores mais categorizados”, escreveu Cândido de Oliveira na obra “Os Segredos do Futebol”, publicada em 1947. Muita coisa mudou desde então no futebol português, as equipas técnicas são maiores e mais qualificadas, mas esta variedade de funções continua presente, sobretudo, nos elementos que mais directamente trabalham com os treinadores.

Chame-se-lhes adjuntos, assistentes, braços direitos. Ocupam o espaço entre o treinador principal e os restantes técnicos (treinadores de guarda-redes, preparadores físicos, observadores...). Durante os jogos estão normalmente sentados ao lado do técnico principal, como confidentes, e vão trocando impressões. O número um é o rosto visível, aquele que recebe os elogios quando as coisas correm bem e as críticas quando as coisas correm mal. Mas, longe dos holofotes, os adjuntos são peças importantes para que o trabalho decorra com normalidade.

Trabalhar na sombra de outro treinador não é um problema para os três adjuntos com quem o PÚBLICO conversou. É a realidade das funções – e metade dos técnicos principais da I Liga já passou por essa posição. Sérgio Conceição, por exemplo: o treinador campeão em título e actual líder do campeonato foi assistente logo após deixar de jogar, no Standard Liège. Ser adjunto é uma posição de aprendizagem, como se percebe pelo facto de 11 dos 18 adjuntos da I Liga serem mais novos do que o treinador principal.

Um desses casos é o de Vítor Severino, adjunto de Luís Castro. Há dois anos que acompanha o técnico, primeiro no Rio Ave, depois no Desportivo de Chaves, e agora em Guimarães. Aos 35 anos, é o segundo adjunto mais jovem do campeonato. “É uma possibilidade de aprendizagem e crescimento constante. A tendência é cada vez mais ter adjuntos com funções diferenciadas. Um treinador adjunto será sempre alguém que contribui de forma prática para o processo e a ideia de jogo do treinador, suportado por uma determinada forma de treinar. Treinadores diferentes requerem necessariamente treinadores adjuntos diferentes”, apontou.

O envolvimento é um dos pilares da forma de trabalhar da equipa técnica de Luís Castro. “Temos a obrigação de tentar contribuir sempre com ideias que possam vir a melhorar a nossa ideia de jogo e a nossa proposta de treino. Todos têm de estar prontos para dar esse contributo, ninguém fica fechado na sua caixa, com a sua função. Não vemos as coisas dessa forma separada”, sublinhou Vítor Severino, ressalvando: “Mas a decisão é sempre do treinador principal. Há debate de ideias, o treinador chega a uma conclusão, toma uma posição, e a partir do momento em que ele a assume, a decisão é de toda a equipa técnica.”

Transmitir experiência

Em Setúbal, as posições são inversas: o treinador principal, Lito Vidigal, é mais novo do que o seu adjunto. Com 67 anos de idade e 35 de carreira, o professor Neca, como é conhecido no futebol, acompanha o ex-internacional angolano desde 2015, quando orientaram o Arouca. Com um largo percurso como treinador em Portugal e no estrangeiro, incluindo selecções nacionais, o prof. Neca aceitou ser adjunto numa perspectiva de passagem de testemunho. “Há um tempo para tudo. Para sermos jovens, para sermos jogadores de futebol, para sermos treinadores, e para colocarmos a nossa experiência ao serviço dos outros. Os treinadores mais experientes podem ser uma ajuda muito boa para esta gente nova”, notou. Foi um regresso a funções que desempenhou em duas etapas da sua carreira: com Artur Jorge no Benfica, entre 1994 e 1996, e com António Oliveira na selecção nacional, no Mundial 2002.

“Sou treinador diplomado desde 1980 e, quando comecei a treinar, só tinha um adjunto. Eu mais um elemento. Era um trabalho completamente diferente. Hoje, as equipas técnicas são formadas por seis ou sete elementos”, recordou o prof. Neca, realçando que “ser adjunto e ser treinador é uma diferença abissal”. “O pára-raios é sempre o treinador. Eu posso estar ao lado do Lito Vidigal, vem uma trovoada e o raio apanha sempre o treinador principal”, diz.

“O treinador principal assume o papel de tomada de decisão em última instância, de dar a cara em qualquer lugar, de comunicação e liderança”, corroborou Pedro Marques Santos, adjunto da equipa sub-23 da Académica. “O adjunto é também um treinador e, como treinador, terá da mesma forma de dominar todos os aspectos que o treinador principal também domina. Os aspectos técnico, táctico, físico, mental. Poderá participar na tomada de decisão, isso dependerá da perspectiva que cada treinador tem”, acrescentou o técnico de 39 anos.

Antecipar problemas faz parte da concepção que Vítor Severino tem da função de adjunto. “Tento contribuir para o equilíbrio, mas também tento garantir que existem desafios constantes. Se o treinador está demasiado confiante, normalmente eu tento criar ali alguns pontos que nos façam reflectir e estar constantemente alerta”, explicou.

Comunhão de ideias

A relação treinador/adjunto terá sempre de ser construída a partir de uma comunhão de ideias. “É importante que haja um pensamento em conformidade ao nível das ideias, do modelo de jogo, da ideia de treino. É um pilar essencial”, frisou Pedro Marques Santos, acrescentando: “Ser treinador é uma função muito solitária, há uma grande pressão. Por isso, o adjunto é como um fiel escudeiro, que o tenta proteger e estar do lado dele. É fundamental que uma equipa técnica seja sólida e coesa.”

“Dentro de uma equipa técnica é importante a cumplicidade e o conhecimento mútuo. Quanto mais anos funcionar junta uma equipa de futebol, melhor funcionará essa equipa. Com competência, essa cumplicidade surge com maior naturalidade”, destacou o prof. Neca.

Na opinião de Vítor Severino, mais do que a relação pessoal, é primordial a competência profissional: “Há três aspectos fundamentais para mim: lealdade, respeito e coerência. O treinador e os adjuntos não têm de ser os melhores amigos do mundo, mas na sua relação profissional tem de haver esses três aspectos. Dois indivíduos que são os melhores amigos do mundo não vão ter, necessariamente, uma boa relação profissional como treinador principal e treinador adjunto, porque não é essa a base.”

Sugerir correcção
Comentar