Desconstruir uma mulher
John Banville faz uma demonstração feérica da sua habilidade como escritor e, corajosamente, utiliza todos os truques, quase mágicos, para conjurar o fantasma do mestre Henry James.
Antes de iniciar a leitura do mais recente romance do irlandês John Banville (o segundo melhor livro de ficção publicado em Portugal em 2018, segundo os críticos do Ípsilon), é importante relembrar Retrato de uma Senhora, a obra-prima de Henry James, publicada em 1881. Nela, a privilegiada Isabel Archer, nascida em Albany, Nova Iorque, órfã muito nova, mas determinada a “enfrentar o seu destino”, aceita o convite de uma tia abastada para que a visite na sua grandiosa propriedade, perto de Londres. Aí, Isabel encontra o primo, o delicado e sempre enfermo Ralph Touchett — que se apaixona por ela — e recebe uma inesperada proposta de casamento de Lord Warburton, um homem mais velho. Caspar Goodwood, filho de um milionário de Boston, também quer casar com ela, mas Isabel rejeita todas as propostas porque “quer manter intacta a sua independência”. No entanto, numa viagem a Itália, acaba por cair na armadilha preparada por Gilbert Osmond e a sua amante, a diabólica Madame Merle. (De notar que estas duas personagens, cínicas e egoístas, são americanas, embora James insinue despudoradamente que a sua longa permanência na Europa terá contribuído para a sua decadência moral).
Ao aceitar casar com Osmond, Isabel é apanhada numa teia de intrigas e manipulações — incluindo o afecto pela enteada, Pansy — que a desviam totalmente dos seus propósitos. Ao longo desta espécie de melodrama, James desenvolve uma longa e sinuosa análise da personalidade de Isabel Archer, retrata a situação das mulheres no século XIX — incluindo a das que trazem, do Novo Mundo, uma visão mais desempoeirada da vida — e faz uma crítica feroz ao casamento como instituição, um contrato estabelecido muitas vezes na sequência de um impulso.
John Banville pega nas pontas soltas do final do romance de James, quando Isabel, desafiando o marido, volta a Inglaterra para acompanhar o primo nas suas derradeiras horas e, em Mrs Osmond, dá seguimento à aventura existencial de Isabel. O veredicto do infeliz Ralph Touchet — “Isabel não sofreu nem está destinada a sofrer” — acaba por ser uma espécie de maldição que a perseguirá, daí em diante. Morto e enterrado o primo, que lhe deixa uma imensa fortuna porque acredita nas “possibilidades” da jovem mulher, esta inicia a sua longa viagem de regresso a casa, em Roma, onde terá de decidir se fica, ou não, com o marido, e como deverá lidar com a traição e a ignomínia. Em Londres, visita amigas e tenta receber conselhos, mais ou menos díspares e vagos sobre as resoluções que tem de tomar, embarca para Paris, demora-se em Florença e aproxima-se vagarosa e titubeantemente do seu destino, com muitas pausas e mudanças de humor, pelo caminho. Dividida entre o desejo de liberdade — que a fortuna lhe proporciona — e o dever inerente à sua condição — ela é uma “senhora” — Isabel vive num constante vaivém entre o impulso e a reflexão, entre a sua inerente bondade e o desejo de transgressão.
É sabido que uma grande parte dos personagens de Henry James são verdadeiros “peregrinos” que deixam a sua terra natal — em geral a América com destino à Europa — em busca de experiências, nas quais o erótico, o político, o económico e o estético se cruzam incessantemente. É o caso de Isabel Archer, a sua muito complexa e desarmante heroína que, tal como Daisy Miller, outra das suas ingénuas e dramáticas protagonistas, sofre o choque das diferenças culturais ao ver-se confrontada com a decadente sociedade do velho continente. James castiga severamente estas jovens mulheres que trazem consigo um forte desejo de liberdade e independência, mas que pecam por “excesso de autoestima”, segundo o autor. Na sua qualidade de expatriadas, de deslocadas, observam com intensidade um universo que lhes é estranho e Banville parece disposto a resgatá-las desse penoso destino, pelo menos no que diz respeito a Isabel Archer, não sem as fazer passar pela dúvida, pela indecisão e pelos maus julgamentos. Se a heroína de James é uma jovem promissora que traz consigo um optimismo e uma frescura incomparáveis, de certa forma “manchados” pelas possibilidades fornecidas pelo dinheiro — Isabel tanto é condicionada por Osmond, por escassez, como por Touchet, por excesso — com Banville, ela surge, mais velha e mais indecisa, sufocada por essa riqueza que tanto pode comprar a sua liberdade — se ela a quiser — como pode restringi-la a uma quase servidão. Isabel Archer, na sua transformação para Mrs Osmond — isto é, desde o instante em que casa com o cínico, preguiçoso, esquelético e maquiavélico Osmond — sofre um processo de metamorfose dolorosa, metamorfose essa que Banville se dispõe a explorar longa e intensamente, com um método que roça o sadismo.
E se James deixou Isabel no “fio da navalha”, no processo de decidir (ou não) o resto da sua vida, Banville não oferece uma saída fácil, antes prolonga a incerteza até ao limite do suportável, terminando o seu relato de uma forma paradoxalmente inconclusiva. Num arremedo dos maneirismos de James, Banville transforma Isabel em Mrs Osmond, fazendo dela uma quase caricatura, numa permanente inquietude, a olhar por múltiplas janelas, a dar voltas intermináveis por jardins, a sentar-se a levantar-se de inúmeros e aconchegados sofás, a entrar e a sair de fiacres, a beber chás tépidos e intragáveis, a dormir em camas desconfortáveis e a mudar de decisão com uma impulsividade caprichosa, sempre seguida da sua severa, mas estóica criada, Staines, que funciona como uma espécie de Sancho Pança, no feminino.
O fascínio por Henry James, também reconhecido por Banville, parece estar para durar. Em anos recentes, Colm Tóibín, Alan Hollinghurst e David Lodge não o deixaram sossegado, ficcionando-lhe a vida e a obra, apropriando-se do seu legado. John Banville faz, neste romance, uma demonstração feérica da sua habilidade como escritor e, corajosamente, utiliza todos os truques, quase mágicos, para conjurar o fantasma do mestre James. Feito o balanço, é facilmente discernível o prazer que deve ter retirado desta experiência. Na realidade, o exercício em torno do destino de Isabel Archer/Mrs Osmond — que subtilmente Banville satiriza com ferocidade contida — é muito mais sobre o seu criador inicial, Henry James, do que sobre a sua heroína. Ou, melhor ainda, é essencialmente sobre o próprio Banville.