Trump sai da Síria para abandonar o papel de "polícia do Médio Oriente"

Anúncio de retirada total das tropas norte-americanas apanhou vários aliados de surpresa. Para o Governo britânico, "a ameaça mantém-se bem viva".

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Trump numa visita a Fort Drum, no estado de Nova Iorque Carlos Barria/REUTERS

O Presidente dos EUA, Donald Trump, disse esta quinta-feira que o anúncio da retirada total das tropas norte-americanas da Síria "não é uma surpresa", e justificou a sua decisão com a vontade de que o país deixe de ser "o polícia do Médio Oriente".

Na quarta-feira, quando anunciou a retirada das tropas norte-americanas, Trump disse que tomou essa decisão porque os extremistas islâmicos do Daesh foram "derrotados" no terreno, na Síria e no Iraque – uma afirmação entretanto contestada por governos aliados da Casa Branca e por congressistas norte-americanos, tanto do Partido Democrata como do Partido Republicano.

Para os críticos da decisão do Presidente Trump, há três grandes razões para que a retirada total das tropas norte-americanas da Síria seja um erro: pode encorajar os extremistas a voltarem a reagrupar-se nas zonas de onde foram expulsos; abre as portas ao reforço da influência da Rússia e do Irão no Médio Oriente, numa altura em que os EUA tentam isolar cada vez mais Teerão; e, ao abandonarem os grupos que apoiaram nos últimos anos na luta contra o Daesh, como as milícias curdas do YPG, os EUA podem enviar o sinal a potenciais aliados, em outras regiões, de que não são um parceiro fiável.

Mas o Presidente Trump deixou claro esta quinta-feira, numa série de mensagens partilhadas no Twitter, que a sua prioridade é fazer regressar a casa os cerca de dois mil norte-americanos que estão no terreno na Síria – uma promessa feita ainda durante a campanha eleitoral, em 2016, e que foi repetida em outras ocasiões desde então.

"A Rússia, o Irão, a Síria e outros são os inimigos locais do ISIS [Daesh]. Chegou a hora de regressarem a casa", disse o Presidente norte-americano, numa mensagem que é um exemplo da forma como se apresentou ao eleitorado durante a campanha para a Casa Branca: sair o mais possível dos conflitos internacionais, cortando com uma tradição norte-americana de intervenção externa que tem dominado as relações internacionais desde o fim da II Guerra Mundial.

"Os EUA querem ser o polícia do Médio Oriente, sem ganhar NADA e a desperdiçar vidas preciosas e triliões de dólares para proteger outros que, na maioria dos casos, não apreciam o que estamos a fazer? Queremos ficar lá para sempre? Chegou a hora de outros lutarem", disse ainda o Presidente dos EUA.

Fogo amigo

Só que essa postura é muito contestada por vários conselheiros do Presidente – segundo os media norte-americanos, há semanas que muitos deles tentavam convencer o Presidente a voltar atrás com a sua decisão.

Também no Partido Republicano há vozes que se levantam contra a decisão de Trump, destacando-se Lindsey Graham, um dos mais fortes aliados do Presidente no Senado. Esta quinta-feira, Graham e outros cinco senadores, do Partido Republicano e do Partido Democrata, escreveram uma carta onde pedem ao Presidente norte-americano que reconsidere a sua decisão, já que a retirada total da Síria vai "renovar e encorajar" o Daesh em todo o Médio Oriente.

"No que toca à luta contra o ISIS [Daesh], não acredito que seja sensato delegar essa luta na Rússia, no Irão e em Assad. Eles não têm como prioridade os melhores interesses da América", disse o senador Lindsey Graham.

O Governo britânico também contestou a declaração do Presidente Trump sobre a "derrota" do Daesh na Síria: "Eu discordo totalmente. [A ameaça do Daesh] transformou-se em outras formas de extremismo e a ameaça está bem viva", disse o ministro Tobias Ellwood, um dos responsáveis pela Defesa no Governo do Reino Unido.

Como todos os aliados dos EUA, o Reino Unido reconhece que "a coligação e os seus parceiros na Síria e no Iraque recapturaram a grande maioria do território do Daesh e fizeram importantes avanços nos últimos dias na última área do Leste da Síria ocupada pelo Daesh", disse um porta-voz do Governo britânico citado pelo jornal Guardian.

"Mas há muito por fazer, e não devemos perder de vista a ameaça que eles representam. Mesmo sem território, o Daesh vai continuar a ser uma ameaça."

Receios curdos

A mesma ideia foi transmitida pela coligação liderada pelas milícias curdas que combate na Síria com o apoio dos EUA.

As Forças Democráticas da Síria disseram que a retirada das tropas norte-americanas vai permitir que o Daesh volte a ganhar terreno. Para a aliança de forças curdas e árabes, a retirada total dos EUA tem "implicações perigosas" para a estabilidade na região e "cria um vácuo político e militar que deixa as pessoas nas garras de grupos hostis".

Esta aliança apoiada pelos EUA é considerada a principal responsável no terreno pela derrota militar do Daesh. A esmagadora maioria dos cerca de dois mil norte-americanos na Síria estão posicionados na região curda no Norte da Síria.

O apoio norte-americano a estas forças curdas prejudicou as relações entre os EUA e a Turquia, que as considera como organizações terroristas. A notícia de que pode estar em preparação uma ofensiva turca contra as milícias do YPG – a principal força da coligação – é apontada como uma das razões para a retirada anunciada por Donald Trump.

"Donald tem razão"

Mas a decisão do Presidente Trump também foi recebida com aplausos, dentro e fora dos EUA.

Um dos elogios veio do senador Rand Paul, conhecido por defender o fim da política de intervenção externa norte-americana.

"Hoje estou orgulhoso do Presidente, ao ouvi-lo declarar vitória na Síria", disse Paul.

"Os pessimistas em Washington vão estar contra ele. Mas se perguntarem ao povo americano, foi por isto que o Presidente Trump ganhou as eleições", disse o senador do Partido Republicano na Fox News.

Mas a declaração que mais se destacou entre o grupo de apoiantes da decisão do Presidente norte-americano foi a do Presidente russo, Vladimir Putin.

Durante a sua tradicional conferência de imprensa de fim de ano, que decorreu esta quinta-feira, Putin disse que o Presidente Trump "tomou a decisão certa", explicando depois que concorda com ele porque os EUA estão na Síria "ilegalmente", ao contrário da Rússia, que foi "convidada" pelo Presidente Bashar al-Assad.

Quanto à afirmação de que o Daesh foi derrotado no terreno, o Presidente russo disse estar em sintonia com o Presidente norte-americano: "O Donald tem razão, e eu concordo com ele."

Apesar de ser uma promessa de campanha eleitoral, repetida por Trump nos últimos três anos, o anúncio da retirada total das tropas norte-americanas da Síria apanhou muitos aliados dos EUA de surpresa porque os sinais enviados pela Casa Branca no último ano foram muitas vezes contraditórios.

No início de Abril deste ano, o Presidente Trump reafirmou que queria retirar as tropas da Síria: "Quero sair de lá. Quero trazer as nossas tropas para casa." 

Poucos dias depois, a 14 de Abril, a Casa Branca ordenou um ataque contra instalações militares síriasem resposta a um ataque químico contra civis em Douma, no dia 7 de Abril.

Depois disso, a embaixadora dos EUA nas Nações Unidas, Nikki Haley, tentou tranquilizar os seus aliados, dizendo que as tropas norte-americanas iriam ficar na Síria até serem cumpridos três objectivos: "Garantir que não sejam usadas armas químicas"; "derrotar o ISIS [Daesh]"; e "vigiar os passos do Irão" na guerra da Síria.

A partir de Setembro, a ideia de uma retirada total da Síria a curto prazo parecia ter sido posta de lado.

Nesse mês, vários representantes da Casa Branca e do Pentágono começaram a dizer que os EUA ficariam na Síria por tempo indeterminado. Pelo menos até que houvesse uma solução política para o futuro do país e, acima de tudo, até que o Irão – que está no terreno a apoiar as forças de Bashar al-Assad – se visse forçado a sair da Síria, vergado pelas sanções aplicadas pela Casa Branca.

Por essa altura, instalou-se a ideia de que a política norte-americana para a Síria tinha mudado, tendo em vista uma política mais abrangente de contenção do Irão – uma ideia que veio a revelar-se errada com o anúncio da retirada total da Síria, anunciada esta semana.

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