Djaimilia Pereira de Almeida: não é só raça, nem só género, é querer participar na grande conversa da literatura
Há três anos, com Esse Cabelo, apresentaram-na como representante de uma literatura acerca de raça, género, identidade. Voltou agora com Luanda, Lisboa, Paraíso e diz que quer apenas participar na longa e antiga conversa sobre literatura. Enquanto procura escrever o seu livro ideal, totalmente inventado, uma mancha de texto sem capítulos que resista a discussões acerca do presente.
O nome de Djaimilia Pereira de Almeida apareceu na literatura há três anos quando publicou Esse Cabelo (Teorema, 2015), ficção autobiográfica, situada num sub-género que recebeu o nome de auto-ficção. É uma espécie de romance-ensaio que despertou a atenção de leitores e da crítica para a que parecia uma voz inovadora de uma geração que falava de raça, identidade, género, questionando clichés associados à condição de negritude ou do que é viver num mundo de estranheza seja no lugar onde nasceu, Angola, como naquele onde cresceu e vive, Portugal. Djaimilia foi então comparada a outras escritoras femininas que surgiram nos EUA, Inglaterra, em países de África como a Nigéria ou a Etiópia; mulheres que escrevem desafiando o que se espera delas.
Aos 36 anos, regressa, confirmando que aquele livro não foi um acto solitário numa obra que quer construir, assume aqui, distanciando-se desse eu narrativo inicial e autobiográfico, para se aproximar da invenção mais pura. Está a descobrir o que isso é. Luanda, Lisboa Paraíso (Companhia das Letras) é um passo nessa direcção. Em pano de fundo há a guerra, a pobreza, os retornados, os que ficaram, os que sobrevivem em território estranho, a doença, a exclusão... Mas há, entre tudo isto, dois homens como protagonistas, um pai e um filho, e a memória de cada um; um passado que se quer esquecer, alguém que decide que não será mais angolano. É uma construção de identidades condicionada por um presente que nunca se compadece dessa memória, que não a respeita. Esquece-se para se sobreviver no novo livro de Djaimilia Pereira de Almeida, escritora que acaba também de ganhar uma bolsa de criação literária.
Esse Cabelo foi um livro muito bem recebido que a conotou, enquanto autora, com as questões de raça, feminismo, identidade, a partir da escrita autobiográfica. Como se vê no modo como a situaram na literatura?
Não se pode controlar a maneira como se é recebido nem o que os leitores fazem com o que nós escrevemos. Portanto, lido com todas essas categorias, rótulos de leituras, o que for, com enorme curiosidade e também alguma surpresa. Não aconteceu, até agora, ter sentido que não me estivessem a fazer justiça. Se calhar não utilizaria todas essas categorias para descrever o que fiz, mas recebo-as com grande serenidade.
Imaginemos que lhe seriam dadas a escolher categorias que a identificassem.
Preferia não escolher. Há muitos aspectos da história da literatura portuguesa que são importantes para mim. É a tradição que conheço melhor e a que está na minha cabeça quando estou a escrever. A literatura portuguesa, a língua portuguesa. Mas a literatura portuguesa é uma coisa muito vasta e todos esses rótulos são leituras a posteriori. Além disso, os livros surgem num certo momento e a recepção que têm é percepcionada pelos momentos históricos que estamos a viver. Esse Cabelo surgiu num momento muito particular em que fez sentido ser abraçado por uma série de causas.
Veio num tempo que o recebeu bem.
Exactamente.
Nessa vastidão histórica e geográfica da literatura portuguesa há espaços e temas que estão, no entanto, menos explorados, periféricos. A sua escrita traz essa experiência.
Sim, reconheço-me nessa descrição de que o género de histórias que tenho contado até agora é o de história periférica, mas não me sinto periférica em relação à literatura portuguesa em geral, sobretudo como leitora. É verdade que tenho um percurso de vida parecido com o de muitas pessoas que vieram de África; algumas até nasceram cá; pertenço a esse conjunto de pessoas. Mas tive um acesso privilegiado à tradição literária que muitas dessas pessoas não têm. É natural que quando começo a contar histórias, elas venham de um lugar de onde até agora têm vindo poucas histórias, mas nunca premedito fazer isso. E também não sei se vou continuar a fazer sempre isso, porque interessa-me explorar também o atrevimento de que uma pessoa que venha de uma posição mais periférica possa contar histórias que não se cinjam à periferia. É trazer para a conversa pessoas que se calhar nem sequer chegariam a ler os livros. Interessa-me também, porventura, falar de outras coisas de um ponto de vista menos periférico. Há três anos, quando falámos, já dizia isto, que é preciso que comecemos a ouvir as histórias de pessoas de várias periferias. Tenho muita curiosidade por muitas histórias. Não só pelas de afrodescendentes, mas pelas de outras comunidades que vivem em Portugal. Por exemplo, anseio pelo momento em que comecemos a ouvir as histórias dos asiáticos que vivem em Portugal, ou das comunidades indianas. Não encaro isto como se de repente pudéssemos aceder a todas essas identidades, mas que todos possamos participar numa conversa, que é uma conversa muito antiga, a que se chama literatura portuguesa.
De que nomes, dessa tradição, se sente mais próxima e a fazem ter esse sentido de pertença?
Não me cinjo à literatura portuguesa, porque pude ler muitas outras coisas. Aliás, os autores a que volto mais vezes são, sobretudo, franceses. Mas na literatura portuguesa interessa-me muita coisa que vai desde Sá de Miranda até... nem sei por onde começar [risos], mas Raul Brandão, Fernando Pessoa, muitos poetas. Aos 18 anos, quando comecei a pensar que gostaria de escrever, de fazer isso na minha vida, andava a ler Manuel Gusmão. Sou uma pessoa de livros mais do que de autores; portanto, mais do que dizer autores, sei os livros que me marcaram. O livro do Manuel de Gusmão chama-se Teatros do Tempo [Caminho, 2001] e foi muito importante para mim. Durante certa altura o Álvaro de Campos. Noutra fase, ainda muito jovem, li muito Herberto Helder. Entretanto comecei a alargar as leituras. Mas há livros muito marcantes, Os Pescadores, do Raul Brandão, foi muito importante num certo período e acompanhou-me ao longo de muitos anos. Neste momento, no presente, volta ser muito importante para o que vou fazer a seguir.
Há pouco dizia que já não se lembra do que está no seu novo livro. Acaba de sair. Como é que essa memória se apaga assim?
Não sei. Mas depois do livro estar feito e publicado, normalmente não o volto a ler. Custa-me bastante, e vou-me esquecendo. No momento em que o livro está pronto sei-o todo de cor. Depois fecho e esqueço. Lendo agora o Esse Cabelo é uma surpresa ver o que lá está porque já me esqueci.
Voltou a esse livro?
Não. Mas quando vou, quando calha a ir por qualquer razão, já não me lembro de nada. Apagou-se.
É um mecanismo de defesa, medo de encarar o texto?
Não. Acho que preciso de esvaziar o espaço para o ocupar com outras coisas. Quando publico um livro estou sempre nervosa e começo logo a pensar noutras coisas.
Já começou?
Sim. Quando estou mais ansiosa, escrever ajuda-me muito. Nos momentos de maior tensão ponho-me a escrever. Normalmente, ponho-me a escrever outra coisa e vou esquecendo o que ficou para trás.
Este novo livro traz uma grande oralidade à escrita, uma oralidade quase antiga. Concorda?
Nunca tinha pensado nisso. Mas sim, não fiz nenhuma pesquisa. Se calhar são coisas que não sabia que sabia e emergem à medida que vou escrevendo, aparecendo naturalmente; modos de falar, pronúncias... Estão num subterrâneo qualquer e a imaginação abre uma caixa. Esta semana estava a pensar nisto, de como é esta coisa de fazer um livro. Agora que estou dedicada a um texto que é passado num outro período, noutro século, e estava a pensar que é como agarrar num prato de vidro ou um jarro de vidro, atirá-lo ao chão e ele partir-se em mil bocadinhos. O momento da escrita é como se os muitos, muitos bocadinhos de vidro vindos de muitos lugares se constituíssem num mosaico reconhecível. Há coisas que não sabia que sei, ou já não me lembro que sabia, que passei por elas. Pode ser um olhar visto não sei onde, o aspecto de uma casa que vi em qualquer lado. São vários bocadinhos que depois formam...
Um sentido?
Sim.
Vem de um livro-ensaio, onde há um eu assumidamente autobiográfico, para um romance com alguma coisa de autobiografia. Os dois situam-se mais ou menos na mesma época, em comunidades mais ou menos semelhantes, onde sai do eu ficcional. Como é que isso aconteceu?
Sim. O que se passou entre um livro e o outro foi que percebi que o conseguia fazer. Só não escrevi Esse Cabelo na terceira pessoa porque acho que ainda não sabia como é que se fazia isso. Passei três anos a tentar perceber como se fazia porque só me interessava fazer isso.
Sair do eu?
Sim. Completamente. Agora cada vez tenho menos interesse, ou já não tenho nenhum interesse, em escrever do ponto de vista do eu. Interessa-me afastar-me do meu próprio ponto de vista e virar-me para fora, para o ponto de vista dos outros e aproximar-me de outras figuras que não eu. Eu e a minha particularidade deixaram de me interessar. O que interessa é pensar em como é que se conta uma história, como é que se faz um livro e, de projecto em projecto, trabalhar isso. É como se fosse um vector que antes estava apontado para mim e agora passa a estar apontado em direcção contrária, no sentido do mundo lá fora.
Há pouco tempo Zadie Smith contava a dificuldade de fazer o percurso inverso, deixar a terceira pessoa e escrever na primeira, o que só aconteceu no último livro dela.
Sim, lembro-me de entrevistas antigas de Zadie Smith em que ela dizia que achava fútil estar a escrever na primeira pessoa. Para mim foi o contrário, porque eu gostava de escrever livros como os que gosto de ler e o género de histórias que gosto de ler é de aventureiros e marinheiros.
Que resultam da imaginação.
Sim. Homens em mar alto, piratas. Há um sentido de aventura que o ponto de vista da primeira pessoa, acabando por se centrar nas nossas próprias angústias, não permite muito. Sobretudo, interessa-me contar histórias e interessa-me contá-las do ponto de vista do número mais variado de pessoas que eu ainda não sei quem são.
Como foi essa aprendizagem, por exemplo, a de construir personagens?
À custa de muitas tentativas; tentativa e erro. O livro não é muito longo, mas houve muito desperdício... Para mim nunca é desperdício porque em todo esse caminho não deito nada fora, vou sempre buscar coisas; acaba sempre por ter um uso, tal como na costura se usa o desperdício para fazer outras coisas. Mas houve muito, muito desperdício. Sobretudo porque neste caso também tentei procurar uma forma clara, mais clara; uma frase mais clara; procurar um certo ritmo, um modo menos reflexivo de expressão.
Sair mais do ensaio?
Exactamente. E tentar encontrar a forma de contar adequada à natureza das vidas que eu estava a falar. Interessava-me uma escrita mais terra a terra. Talvez isso tenha sido mais difícil do que propriamente construir as personagens. Talvez a coisa mais difícil tenha sido o processo de desaprendizagem necessário para dizer as coisas de uma maneira simples. Na minha cabeça o livro teve sempre o aspecto de um balanço e, a partir de certo ponto, escrevi-o como se estivesse a contar às personagens como tinha sido a vida delas, como se elas me perguntassem: “então como foi a nossa vida?”. Interessava-me contar-lhes de maneira a que elas conseguissem entender. Foi muito difícil porque tinha toda uma série de vícios e de tiques
Académicos?
Académicos e não só, que me interessava mandar fora. É preciso muita paciência para isso – paciência para comigo – para chegar aí.
O território de Luanda, Lisboa, Paraíso, no entanto, é-lhe familiar. Não foi para um universo imaginário.
Ainda não. Até um certo ponto este é um mundo que eu conheço, mas também só até um certo ponto. Não houve grande pesquisa. Houve uma grande recolha de objectos e as personagens foram construídas a partir dos seus objectos.
Há a história de uma mala encontrada numa feira de velharias.
Sim, está ali [aponta para outro canto da casa]. São objectos que apanho em feiras de velharias. Vou todos os domingos a essas feiras. Levo muito pouco dinheiro e vou à procura de coisas.
O que lhe interessa nessa procura? Histórias?
Sim, histórias, mas sobretudo gosto de velharias, mas não são coisas valiosas. Faço colecções de algumas coisas e aquilo mexe com a minha imaginação como mais nada mexe. Começo a pensar: está aqui um copo, de quem foi este copo. Dá-me muitas ideias. Faço isto há muitos anos e nunca pensei em histórias a partir daí. Foi acontecendo naturalmente. A certa altura dei conta de que estava a comprar objectos sem nexo, coisas de que não precisava para nada, lixo autêntico, tralha, e depois comecei a olhar para aquilo tudo e a pensar: isto podia ser tudo da mesma pessoa, podiam ser objectos de uma pessoa. Era como se fosse um enxoval de uma pessoa que eu não conhecia.
E começou a atribuir um dono àquele enxoval.
Exactamente. Tudo coisas de homens. Um cinto, uns óculos escuros... Foi assim que eles nasceram. Depois comecei a desenhar, uns desenhos sem interesse, uns homens; no início de tudo foi assim. Depois ganharam nome e foram nascendo. Houve também muitas imagens. Fotografas importantes da história da fotografia, que também me dão muitas ideias; ver livros de fotografia ajuda-me muito, a perceber nuances, princípios de personagens e princípios de histórias. Isso tudo, junto com leituras que estava a fazer, ajudou a chegar a este livro.
Um livro em que, como referiu, os protagonistas são homens...
Foi totalmente espontâneo. Nunca me apareceram como mulheres e, não sei porquê, mas ultimamente sempre que escrevo, escrevo sobre homens, e como não contrario...
Como chegou à estrutura deste livro que se divide em duas partes?
Essa divisão é muito tardia. Gostava de ser capaz de escrever um livro que fosse, da primeira à última linha, sem capítulos, sem interrupções, um texto contínuo. Dou muita importância à mancha; não conseguindo ainda fazer isso, divido-os por capítulos.
O livro saiu há pouco tempo, as reacções estão ainda a sair. Como gere este momento?
Desta vez, como não houve lançamento, fiquei menos nervosa.
Opção sua?
Sim.
Porquê?
Nunca vou a lançamentos [risos]. Não faz muito o meu género e, então, podendo não o fazer, não fiz. Ao mesmo tempo isso também foi um bocadinho estranho. Não houve nada a marcar, e de um dia para o outro o livro estava nas livrarias; ainda não o vi em nenhuma livraria não vou ver nada.
Lê as críticas?
Sim, algumas leio. Mas também não leio integralmente. Isso não me interessa. O que sinto é que o que eu tinha de fazer já fiz.
Mas interessa-lhe ser lida.
Interessa-me, sim. Se houvesse um lançamento se calhar teria ficado ansiosa. Mas agora sinto-me feliz porque concluí. A maneira como giro esta fase é pôr-me a escrever. Este é um período muito produtivo, em que escrevo muito. É uma espécie de casaco com que me visto.
O seu nome numa altura em que há uma curiosidade global acerca de uma escrita feita por mulheres negras e pelo que traz de novidade à literatura. É uma curiosidade que ultrapassa a literatura e é social e política.
Sou leitora de algumas dessas pessoas e acho esse contributo importante. Mas quando se fala de escritores com um percurso como o meu às tantas já não se está a falar de literatura. Já só se está a falar de todo esse lado, social, político... Acho importante nunca perder de vista também o aspecto literário. O contributo social e político é tão mais forte e perene quanto se misturar com esta conversa; a conversa: essa conversa antiga, a conversa do que se passa nos livros. Interessa-me participar nessa conversa. É tão mais subversivo o contributo de todas essas pessoas quanto mais ele se inscrever nesta conversa e continuar para lá do momento em que as discussões fora da literatura estavam a ser tidas. Os livros preservam o sentido da discussão e mantêm entre si uma discussão própria, que nos ultrapassa, que se prolonga para lá de nós e para lá do momento que estamos a viver.
Não se sente representante de algum tipo de literatura.
Não. Talvez sinta uma grande responsabilidade. Mas é, antes de mais nada, uma responsabilidade em relação próprio trabalho que estou a fazer e de respeito para com as personagens de que estou a falar. Presto contas às personagens. Mas não me sinto representante de uma literatura. Sinto que estou a contribuir para uma conversa, que também é essa conversa política, social, etc., mas quando escrevo não estou a pensar nisso. Estou a perceber como é que se faz o que eu gostava de saber fazer. E preservando um certo gozo em fazer isso. Escrever é a coisa que me dá mais alegria. É uma coisa associada à felicidade. Se ainda por cima os livros contribuírem para uma discussão, se chamarem a atenção para coisas, se forem lidos com benefício para pessoas, fico ainda mais feliz. Mas não premeditei isso, porque se me concentrar apenas nisso tenho medo que os livros se tornem maus.