Um manual de regras e a sombra de Bolsonaro
A Cimeira do Clima de Katowice cumpriu o objectivo de acordar um manual de regras comuns para concretizar o Acordo de Paris e pouco avançou na questão do financiamento especialmente aos países mais vulneráveis
O Presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, foi a sombra da maratona da Cimeira do Clima em Katowice. A pretensão do Brasil de incorporar desde já detalhes dos mecanismos de mercado dos créditos de emissões de gases com efeito de estufa bloquearam os trabalhos e obrigaram a uma maratona durante todo o dia de ontem, contrariando a expectativa das delegações de quase 200 países que já na véspera se preparavam para concluir a conferência.
Perto das 21h00 de Lisboa, o comunicado final da cimeira anunciou o acordo sobre um livro de regras comuns para aplicar o Acordo de Paris que visa limitar o aumento da temperatura global média “bem abaixo” dos dois graus Celsius. As regras comuns foram o objectivo mais mediático desta cimeira, mas para um grande número de países era tão decisivo como a questão do financiamento sobretudo aos países mais vulneráveis, em que pouco se avançou.
“Agora, é só o Brasil”, diziam os negociadores, face ao arrastamento das negociações. Estava em causa o risco de dupla contabilidade dos créditos de emissões (contabilizado pelo país “poluidor” que compra créditos através de projectos em outros países que os contabilizam também) e as condições mais restritas e detalhadas de auditoria impostas pelo Acordo de Paris. Um negociador, citado pela agência Reuters, admitia que “o Brasil está a fazer isto porque vai ter um novo Presidente e [os seus negociadores] estão preocupados que a mudança política não sustente o que aqui for acordado”. Entre as pretensões do Brasil de ter desde logo inscritos de mecanismos de compensação de emissões, à oposição da União Europeia e da Suíça, que se opunham ao que chamavam “um mau acordo”, a solução encontrada, com a presidência da cimeira, foi trabalhar este dossier neste ano que se segue.
Bolsonaro ainda não tomou posse, será no dia 1 de Janeiro, mas a pressão do Brasil vai pairando, desde a ameaça, durante a campanha eleitoral, de seguir o exemplo de Donald Trump e retirar o Brasil do Acordo de Paris, até à desistência de acolher a Cimeira do Clima de 2019. Michel Temer, o Presidente ainda em exercício, quis candidatar o Brasil à sua organização mas terá recuado, segundo a imprensa brasileira, por pressão de Bolsonaro. Ontem, este justificou que a realização da cimeira teria um custo de 500 milhões de reais e que “poderia gerar constrangimentos à futura gestão”. O Chile será o país anfitrião.
A associação ambientalista Zero refere que a conferência “conseguiu finalizar o livro de regras do Acordo de Paris” mas “infelizmente não se conseguiu mobilizar suficiente vontade política” para promessas climáticas mais ambiciosas nem para “garantir o apoio financeiro adequado para os países em desenvolvimento lidarem com impactos climáticos devastadores”.
As regras comuns ora acordadas resultaram num documento de 156 páginas. Estas regras iguais para todos estabelecem, por exemplo, que a forma como se inventariam determinadas emissões de gases com efeito de estufa (GEE) à saída de uma chaminé de uma central a carvão tem de ser a mesma em toda a parte do mundo não só para evitar jogos de contabilidade de emissões como também para permitir a comparação do caminho entre os vários países e ter critérios que garantam um mercado de emissões reais e não de “gato por lebre”. Há quem lembre que este processo é semelhante ao que aconteceu quando a Rússia aderiu à OMC em 2012, em que foi preciso que o país aceitasse regras de contabilidade do seu PIB, de variáveis macro-económicas, iguais aos outros para que pudessem ser comparáveis.
Um “eixo do mal"
Para trás ficou o boicote dos EUA, Rússia, Arábia Saudita e Kuwait ao relatório de Outubro do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), contra a vontade dos cerca de 200 países da conferência que o queriam adoptar. A aliança dos quatro países foi qualificada de “eixo do mal” e “nações vilãs climáticas”. Em Outubro, o relatório do IPCC baseado na investigação de milhares de cientistas revelou que a temperatura média global do planeta está a subir mais depressa do que o previsto e que são necessárias “medidas sem precedentes” para que o aumento da temperatura global não ultrapasse os 1,5 graus Celsius.
Os Estados Unidos – que querem retirar-se do acordo de Paris – estavam “dispostos a tomar nota do relatório e agradecer aos cientistas que o desenvolveram, mas não a saudarem-no, já que isso significaria o seu aval”, disse o departamento de Estado em comunicado. A frase de consenso chegou entretanto: a conferência apenas “saúda a conclusão atempada do relatório especial sobre o aquecimento global a 1,5 graus celsius do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas”.
Mas foi contra a lentidão ao financiamento que os países insulares e os mais vulneráveis se manifestaram. A meta do financiamento de 100 mil milhões de dólares até 2020, um dos compromissos do Acordo de Paris, ainda vem longe. O comunicado final reconhece a “necessidade urgente de mobilização das finanças climáticas, incluindo um maior envolvimento do sector privado”.