Guardas prisionais sentem-se “ignorados” e “sobrecarregados”
Ana Roseira fez um doutoramento onde se fala da prisão na perspectiva dos guardas. A pressão a que estão sujeitos devia ser tida mais em conta pelo sistema prisional, defende. E explica que as reivindicações destes profissionais são as mesmas de há vários anos e distintas das exigências de outras classes.
Quando a investigadora e socióloga Ana Pereira Roseira quis desenterrar do desconhecimento a profissão de guarda prisional, os próprios profissionais contactados, para ajudarem a compor as figuras centrais de uma tese de doutoramento em História Contemporânea e Sociologia, mostraram surpresa.
Sem memória de alguma vez alguém se ter interessado pelo seu trabalho, a representação que tinham de si mesmos, pelo olhar do outro, era a de desvalorização social. Quase invariavelmente, carregam a marca de um estigma (embora num grau muito diferente ao que acompanha a figura do carrasco ou executor da pena). E vivem penosamente a dupla condição de cuidar e, ao mesmo tempo, de castigar o recluso.
“Estar na linha” — como os próprios referem esse abrir e fechar das celas rotineiro e constante — é um papel subvalorizado, ingrato, desprotegido e muito distante do verdadeiro trabalho que realizam. Grande parte do estigma vem do desconhecimento, defende Ana Roseira na tese A Porta da Prisão: Uma história dos meios de segurança e coerção penal na perspectiva dos guardas prisionais portugueses (1974 — 2014), apresentada em Abril de 2017, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, e defendida em Janeiro deste ano. Vai ser publicada em livro no próximo ano, pela Afrontamento.
Diz a investigadora que as reivindicações dos guardas prisionais — de que tanto se tem falado por estes dias, por causa das greves em curso, que já originaram protestos de reclusos em várias prisões — são distintas das de outras classes profissionais. Não se limitam a exigências práticas ou remuneratórias: “A greve é uma forma de chamar a atenção para estes problemas pouco tratados, ignorados e negligenciados. Não podemos olhar para estas greves como estando apenas associadas a reivindicações práticas.”
A clássica falta de meios não será a principal origem do mal-estar, explica: “É preciso ir escutar o que realmente é o conflito institucional deste profissional, e perceber qual é a crise identitária nas suas funções.”
“Todos diziam [nas entrevistas realizadas em 2013]: nós precisamos de um estatuto aprovado como existe nas outras profissões. E nesta necessidade de um estatuto, pode ler-se nas entrelinhas que os guardas precisam de uma identidade profissional.” Ana Roseira explica como pouco mudou desde que fez as entrevistas: “Os guardas estão em negociações”, mas elas arrastam-se. O diagnóstico, esse, mantém-se: a profissão do guarda prisional é marcada pela “sobrecarga de funções” e pela “pouca clarificação” das mesmas, isto num contexto em que “existem poucos guardas” e em que “não é valorizado o lado humano e social do trabalho que realizam”.
E prossegue: “Em teoria, a pena de prisão visa a reinserção social do recluso, mas na prática sabemos que não é assim. Esta contradição dos castigos dentro do castigo” cria uma pressão nos guardas ignorada por um sistema que os devia escutar.
Impacto na família
Fechar a porta da prisão não significa conseguir transpô-la, dizem os guardas entrevistados. “Fascinei-me muito com essa questão da porta, de os guardas todos falarem dessa simbologia da porta, de atravessarem a porta mas sentirem que não conseguiam sair efectivamente dessa prisão” no final do trabalho, refere Ana Pereira Roseira.
Xavier, um dos 30 guardas prisionais entrevistados nos três estabelecimentos prisionais estudados na tese — Linhó, Braga e Funchal — é citado no estudo, quando explica como a profissão afecta a sua relação com a família. “Afecta muito porque os nossos filhos sentem (...), nós evitamos falar na realidade daquilo que fazemos porque eles são capazes de dizer ‘o pai prende’ e eu já disse ‘eu não prendo ninguém!’, cuido de pessoas, não prendo ninguém.”
Beatriz, também guarda prisional mostra um lado desconhecido da sua profissão: “Não é uma profissão muito prestigiante, eles dizem que a gente lida com o lixo da sociedade e que a gente anda metida no lixo (...) às vezes eu digo ‘pode ser, podes não gostar, pode ter uma parte negativa’ mas eu digo que tive partes de que gostei e em que me senti útil, que senti que estava a ajudar as pessoas a crescer.”
Profissão subterrânea
A profissão de guarda prisional existe desde que foi estabelecida a pena de prisão efectiva entre o fim do século XIX e o início do século XX. “Isto veio, ao mesmo tempo, para esconder a violência da sociedade, através da privação da liberdade” e de “um modelo assente no castigo e na violência institucional”, defende Ana Roseira.
A socióloga — que estava a estudar os castigos dentro do castigo (ou os meios de coerção penal) — entrou “por estes caminhos da História” e fez desta tese um doutoramento em História Contemporânea e Sociologia. Procurava um tema silenciado e aparentemente invisível. Não é que não existissem estudos prisionais a abordar o assunto, mas não elegiam o guarda como figura central, no conjunto de todas as pessoas que partilham a condição de reclusão — desde os presos a outros profissionais das prisões.
Em 1981, a profissão do guarda era descrita em estudos académicos como uma profissão “subterrânea”, que “tendeu a ser deixada relativamente esquecida”. Nada mudou.
Traumas instalados
Para este estudo, além de 30 guardas, foram entrevistados sete reclusos e 28 profissionais não-guardas (técnicos de reeducação, professores, elementos da direcção e outros). “Vários guardas entrevistados dizem-se mais frios, tristes ou agressivos, após alguns anos de serviço”, conclui a autora. “Contudo, a desconfiança é o traço referido de um modo mais transversal, e mesmo o mais assumido enquanto consequência da profissão.”
Ana Roseira refere-se a um processo “que parece viciar estes profissionais no exercício de uma vigilância mesmo fora da cadeia, como se nunca interrompessem a sua actividade, quando não se tornam mesmo obsessivos e receosos, deixando até de experienciar segurança com pessoas da sua vida íntima” — o que também é referido noutros estudos.
“Marcou-me esse sintoma da institucionalização de que não conseguem libertar-se” e esta ser uma profissão “potenciadora de patologias em qualquer ser humano”, acrescenta.
Num dos depoimentos publicados na tese, o guarda prisional Renato conta: “Disseram[-nos] no curso que ao sair do portão para fora a gente devia ter um interruptorzinho para desligar e esquecer tudo o que se passou. Só que é a tal situação, acabamos por ser humanos e as coisas não são bem assim, acabamos sempre por pensar nas coisas e a nível psicológico acaba por afectar.”
Essa proximidade com o preso que os faz gostar da profissão que têm, é também o que contribui para tornar a vida do guarda, lá fora, mais difícil. A investigadora refere a dificuldade em constituir família ou a frequência da taxa de divórcios nesta profissão.
“Os guardas prisionais descobrem um sentimento de privação que, de certo modo, os aproxima da comunidade reclusa”, refere a autora. “Outros afirmam que, mais do que uma vez, se chegaram a dirigir ao trabalho em dias de folga, nem sempre por esquecimento mas porque o hábito se encarrega de esvaziar a disponibilidade para os tempos livres e a capacidade de quebrar uma rotina tão incorporada.”
Também cita um guarda, Dionísio, que relata: “Acordava a meio da noite nas folgas e vinha trabalhar, pedia para vir trabalhar (...) Aconteceu muitas vezes, estar vestido de folga e vinha para trabalhar.” E acrescenta que o mesmo problema sucede por vezes com guardas reformados e outros: “Queixam-se de ter pesadelos com a prisão. Muitos enfatizam que não conseguem descansar tranquilamente, devido às preocupações constantes com os problemas dos reclusos ou mesmo a traumas ou memórias que se vão instalando.”