Poesia: o melhor do ano
Escolhas de Hugo Pinto Santos e Luís Miguel Queirós.
10
Canto Irregular
Fábio Neves Marcelino
Averno
À consciência de que o verso se vem tornando, nesta era do marketing, uma arte decorativa, os poetas têm reagido de formas diversas: abrindo a poesia às asperezas da prosa (como Manuel de Freitas), reinventando a chamada poesia visual (como Rui Pires Cabral), trilhando uma gnose pessoal que o termo literatura já só imperfeitamente descreve (como Carlos Poças Falcão). Fábio Neves Marcelino tentou outra via: mostrar que a força do verso continua intacta. É preciso é tirar-lhe toda a tralha de cima. Quando ele o faz, “[u]ma fresta na parede/ pode iluminar uma casa inteira”. L.M.Q.
9
A Vau
Paulo da Costa Domingos
Companhia das Ilhas
Se de poesia comprometida se pode falar, em relação a Paulo da Costa Domingos, o compromisso é, sobretudo, para com o estado do mundo. Uma atenção à realidade envolvente do sujeito da escrita que determina uma poesia incapaz de desviar os seus sentidos perante panoramas de destruição, descaso e desfaçatez. Uma poesia, esta, em que a denúncia e a revolta se revestem sempre do máximo cuidado formal. H.P.S.
8
A Foz em Delta
Manuel Gusmão
Edições Avante
“O comunismo é a terceira coisa/ aquela coisa simples que é difícil de fazer”, escreve Manuel Gusmão, citando Brecht. É tentador pensar que, onde se lê “comunismo”, se poderia ler "poesia", vendo por trás destes textos um autor em relação ao qual os atributos “poeta” e “comunista” seriam idealmente comutativos. Dos poemas mais explicitamente políticos a uma evocação tão pessoal como Um pai, uma biblioteca, uma despedida, todos os textos deste livro são fiéis a uma mesma opção, estão do mesmo lado: são sempre lugar de diálogo, comunidade, resistência. L.M.Q.
7
Fuck the Polis
João Miguel Fernandes Jorge
Relógio d’Água
Um regresso à Grécia que constitui não apenas uma revisitação da grande matriz cultural, mas um reequacionar despojado e lúcido de uma realidade multímoda, interpelante. Também estes poemas interpelam esse legado que, em vez de ser uma realidade estanque e cristalizada, se revela um fundo magmático, fortemente dinâmico, capaz de determinar o presente e configurar as possibilidades do futuro. H.P.S
6
Shots
Manuel de Freitas
Paralelo W
Pela primeira vez, todo um livro de Manuel de Freitas é ocupado apenas por poemas em prosa (salvo um único caso), modalidade até agora ocasional. Nestes poemas, a reconhecível tematização da morte, da desilusão da moderna desagregação urbana, vê-se imbuída de insuspeitas forças suplementares. Mais do que temas, estes são agora, mais do que nunca, instrumentos inescapáveis de certa ideia de poesia. H.P.S.
5
Pensar Depois no Caminho
Alberto Pimenta
Edições do Saguão
Um poema épico em pleno século XXI. Uma odisseia da palavra poética no centro de um tempo refractário à distensão do texto e ao alongamento da reflexividade meditativa. Uma vez mais contrário ao que é vigente, Alberto Pimenta opõe-se à era da rapidez imparável, ao consumo imediatíssimo, criando um longo tempo de poesia repartido em várias subzonas em que pensamento e poesia estão em plena vibração. H.P.S.
4
Manual do Condutor de Máquinas Sombrias
Rui Pires Cabral
Averno
Recolher rostos anónimos do passado, ressuscitá-los na brevidade de um verso e legá-los, assim legendados por uma espécie de compassiva imaginação, aos igualmente anónimos e desconhecidos leitores futuros, é um dos ofícios a que Rui Pires Cabral se vem dedicando desde que trocou o verso convencional por uma arte que funde elementos textuais e visuais de um modo absolutamente singular. Mas tudo é poesia neste livro deslumbrante, a começar pelo seu magnífico título. L.M.Q.
3
Para Comigo
Joaquim Manuel Magalhães
Relógio D’Água
Joaquim Manuel Magalhães volta a rever a sua poesia para lhe dar a feição que lhe interessa preservar. Uma ideia de poesia, e uma prática, que pretende ressalvar a sonoridade das palavras enquanto veículo e como portadoras de sentido. Nesta nova reunião da poesia que o poeta pretende preservar, reformulações e rasuras ao que já fora reescrito levam ainda mais longe a radicalidade da depuração. H.P.S.
2
De Passagem
José Alberto Oliveira
Assírio & Alvim
Iniciada há mais de um quarto de século com Por Alguns Dias (1992), título que já deixava pressentir esse tópico da fugacidade da vida (e há outro?) também dominante neste De Passagem, a poesia de José Alberto Oliveira tem demorado um tanto a ser reconhecida como um dos percursos mais consistentes e coerentes da lírica portuguesa das últimas décadas. Reflexão irónica, às vezes irada, mas sobretudo estóica, acerca da nossa efémera passagem terrena, este é talvez o seu livro mais conseguido. Se em Por Alguns Dias evocava os que, “à hora de fecharem/ as lojas”, “têm apenas a última linha/ para não dizerem o que não querem dizer”, agora admite que “só queria/ dizer duas ou três coisas/ e não sair de rastos”. L.M.Q.
1
Sombra Silêncio
Carlos Poças Falcão
Opera Omnia
Na escrita de Carlos Poças, nomeadamente neste Sombra e Silêncio, a reflexividade e a meditação de teor metafísico nunca transportam o poema para os terrenos indesejáveis da soberba, do proselitismo, ou da afectação. Porque o carácter intelectualista, ou mesmo especulativo, desta poesia não traduz uma vontade impositiva de persuasão. O que estes versos veiculam situar-se-ia muito mais correctamente no campo da partilha e da revelação harmoniosa de uma noção comunicável que nos recorda, justamente, que “comunicar” e “comungar” partilham um mesmo étimo – e, possivelmente, um espírito afim.
Agrupamento de poemas anteriormente dispersos, pela sua vária origem e motivação, os que compõem Sombra Silêncio adquirem uma inesperada unidade. Esta, no entanto, não advém tanto de quaisquer formulações temáticas comuns, mas dessa espécie de acordo tácito que parece existir entre composições distintas. Um mesmo impulso de alcance, tentativa de compreensão e aprendizagem, voos do sentido com itinerários que batem o terreno e pretendem sondar o que está para lá dele.
A “grande árvore das crenças” é uma das motivações mais fortes desta poesia. Uma poesia que se mostra, apesar disso, perfeitamente capaz de se situar “entre os cães, nos arrabaldes/ sob a tensão alta”. Pelo que Carlos Poças Falcão nunca poderia ser conotado com qualquer “angelismo”. Bem ao contrário disso, a sua poesia, mesmo partindo tantas vezes de reflexões metafísicas, nunca esquece a terra de que emana. Humanas, as suas meditações, mesmo quando se aproximam do transcendente que perscrutam. H.P.S.