Os jogos de tabuleiro portugueses querem sentar o mundo à mesa

Há quem diga que os jogos de tabuleiro estão a fazer um regresso em grande e as estatísticas comprovam-no: em Portugal, as vendas aumentaram 12% no ano passado. As editoras portuguesas aproveitam o ímpeto e fazem pela internacionalização dos seus produtos — nas casas e cafés do resto do globo.

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A associação Cidade Curiosa não fez por menos: pôs gente a jogar, jogando com o tempo. O grupo juvenil de Braga organizou, pela primeira vez, um evento para quem gosta de jogos de tabuleiro. E fê-lo de graça e para todos, já que o nível de dificuldade variava entre jogos e salas. Pediram parte do nome emprestado aos romanos e organizaram a Augusta Con, que se realizou entre 7 e 9 de Dezembro. Instalaram-se num local construído muito depois daquele império, o Mosteiro de Tibães. Pelo meio, deram aos pais a oportunidade de mostrar aos filhos jogos marcantes de outros anos e contornaram os ponteiros do relógio: é que à hora do almoço do último dia, um domingo, esperando-se alguma calma, ainda havia muita gente a jogar e a chegar para o fazer. “Só ontem passaram aqui mais de 1100 pessoas”, contava ao P3 Alberto Pereira, fundador da Cidade Curiosa Associação (CCA), nessa altura.

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Alberto Pereira é o fundador da Cidade Curiosa Associação DR

Não escondia a incredulidade, já que esperava “umas 300 pessoas por dia”. Por isso, os seus passos eram rápidos, e ia subindo e descendo vezes sem conta as escadas de acesso aos três pisos disponíveis. A qualquer altura parava para explicar o funcionamento de qualquer jogo aos mais inexperientes — tal como os restantes voluntários e membros da CCA. “É um trabalho de quatro anos que resulta neste sentido de comunidade”, explicou. E, na verdade, é este o termo que melhor descreve o conjunto de amantes de jogos de tabuleiro, que corre congressos do género apenas para jogar. Como Javier, de Madrid, que para aqui estar faltou ao Game On, outro evento dedicado à temática que decorreu em simultâneo na capital espanhola. “Fica a reserva para o próximo congresso!”, antecipa o espanhol, lançando o aviso a Alberto à despedida. Atrás dos dois, um cartaz vermelho com letras brancas indicava o espaço dedicado à MEBO Games, editora lisboeta de jogos que ali apresentou a sua mais recente criação, o Arraial.

Agora, um convite ao leitor, bem ao jeito dos jogos de tabuleiro: atire-se o dado e saltemos umas quantas casas, que o local é Lisboa. Bónus: o peão é um telefone. Do lado de lá fala Gil D’Orey, 40 anos, fundador da MEBO Games. Da publicidade passou para os jogos de tabuleiro, que já faziam parte da sua vida “desde miúdo”. “Sempre achei graça àqueles clássicos, como o xadrez. Na altura, não havia muita escolha em Portugal.” Agora, diversidade é o que não falta na oferta da editora: há o Viral, no qual o jogador é um vírus, ou o Sagrada, que nos transforma em vitralistas na Sagrada Família, em Barcelona O Viral faz jus ao nome, tendo já versão russa. Quanto ao Arraial, podem esperar-se versões em inglês, coreano, mandarim e japonês.

Jogar é inclusão

Diz Gil que a MEBO se distingue pelo tema predominante dos jogos: a História portuguesa. Neste âmbito, há Caravelas II, o Castelo de São JorgeReis de Portugal e, claro, o Arraial — um jogo que desafia os participantes a criarem a melhor festa para a sua rua. As propostas “são para todas as faixas etárias e feitios”. O criador da editora defende que os jogos “devem ser jogados entre pais e filhos, e não para estupidificarem os pais”. O mesmo tema inspira a Pythagoras, editora sediada em Vermoil, Pombal, que faz da sua oferta um manual de História de Portugal, através de cartas, puzzles e jogos.

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Este jogo da CardsLab já vai na terceira edição DR

O novo jogo da CardsLab, a terceira edição da linha Países, segue o mesmo raciocínio: igualar as aptidões dos jogadores. Nele, os participantes têm de responder a questões sobre geografia. “O objectivo é juntar várias faixas etárias, várias gerações. Das últimas vezes que testamos o jogo, os miúdos ganharam sempre”, conta Pedro Gordalina, 35 anos, o fundador da empresa instalada em Lisboa. O também consultor informático só estava à espera “da altura certa para avançar”. Isso aconteceu em 2016, quando a startup ficou em 3.º lugar no Novabase Gameshifters, um evento que premeia ideias de diversos ramos e que impulsiona novos negócios. Depois, fizeram duas versões do jogo, testando-o em escolas, “sem grande divulgação”.

Hoje, a estratégia é diferente: querem levar a brincadeira a todos os lados e a “todos os tipos de ambiente”. Por essa razão, os produtores portugueses de jogos de tabuleiro têm sempre uma preocupação maior: a parte lúdica. “Todos os jogos são educativos, mas, para que essa parte funcione, têm de ter uma mecânica apelativa”, argumenta o fundador da MEBO Games. Assim, roubam-se uns minutos aos gadgets. O que também pode acontecer no trabalho – e para “melhorar a performance”, como diz Micael Sousa. O investigador da Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Leiria, de 36 anos, especifica a questão: os party games “podem ajudar a criar e a produzir”, ao passo que os mais sérios “potenciam o desenvolvimento de valências”.

A idade de ouro dos jogos de tabuleiro

A CardsLab “já entrou no grande retalho”, e o novo jogo tem sido apresentado em diversos sítios — das superfícies comerciais às livrarias. A MEBO Games, por seu lado, fez chegar o jogo de espiões Estoril 1942 à China. “É um jogo português sobre algo passado numa cidade portuguesa a chegar à China, para além de ser um sucesso em Portugal”, diz Gil D’Orey. A Pythagoras, por seu turno, vai vender os direitos de Lusitânia a três países: Espanha, EUA e Inglaterra. São casos de sucesso como aqueles de que já aqui falámos: a Lisboa, de Vital Lacerda, e A Aldeia Adormecede André Santos.

Não há concorrência com os videojogos que se amontoam prateleira acima nos supermercados: “O mercado é distinto”, começa por explicar Pedro Gordalina. “Uma das grandes vantagens dos jogos de tabuleiro é mitigar a exclusão social e trazer para a mesa uma família que está no sofá ao telemóvel.” Ou então “tornar-nos mais humanos”, como defende Gil D’Orey.

Assim, não é de estranhar o sucesso que têm vindo a recolher, e a culpa é toda dos millennialsPelo menos é o que diz o Guardian, que procurou justificações para a multidão (40 mil pessoas, para precisar) que se esperava, em Maio passado, na feira de jogos de tabuleiro UK Games Expo. Em Portugal, segundo a GfK, empresa de estudos de mercado, as vendas de jogos de tabuleiro (e puzzles) aumentaram 12% em 2017, e quase dois milhões de unidades saíram das prateleiras para os carrinhos. Segundo a Research and Market, espera-se que, entre 2018 e 2022, haja uma subida de 23% no mercado dos jogos de tabuleiro em todo o mundo (ainda que este crescimento esteja menos acelerado do que noutros anos). 

Resultado de revivalismos? Gil D’Orey acha que não. “Os jogos são muito modernos e apelam. O produto é actual, mas não usa a parte electrónica de propósito”, explica. Dá o exemplo da SPIEL, a feira anual de jogos de Essen, Alemanha, considerada a “maior do mundo”: “Este ano, foram apresentados lá mil jogos novos.” E se fosse um revivalismo, “os jogos antigos vinham ao de cima”, que não é o que acontece: “Os jogos de hoje não têm nada que ver com os antigos. Só o cartão!” Na opinião de Micael Sousa, há uma espécie de regresso “da actividade social na era digital, que aproxima as pessoas, para mexer em coisas e estar com pessoas”. Ao mesmo tempo, podem resgatar-se memórias à mesa — que não são só as de casa.

O que não faltam são listas de cafés onde se pode fazer sala a jogar, por exemplo, o Catan. Mas isso é lá fora; em Portugal, o único estabelecimento do género (para já) conhecido fica em Vila do Conde. No A Jogar É Que a Gente Se Entende, há quase 900 opções que não ganham pó nas estantes, e o pensamento de inclusão repete-se: qualquer um sabe jogar algum dos jogos que ali estão — e não há só o Monopólio. Os proprietários, Manuel e Dina Silva, deixaram Londres e as suas carreiras para voltarem a Vila do Conde com este objectivo. “Era uma ideia de adolescência, porque os jogos estiveram sempre presentes”, explica Manuel Silva. “E também queria 'reformar-me' antes dos 35. Consegui, fi-lo aos 32.” Dina, com 34, também. Não é bem um trabalho, porque tem muito de passatempo pelo meio. “As pessoas que cá param, muitas vezes, não sabem o que jogar, e eu ajudo-as. Se não conseguir, vão logo buscar o Scrabble ou o Monopólio”, conta. E no café entra toda a gente: crianças, adultos, idosos e universitários. Porque os jogos, dentro ou fora de portas de casa, já não são só para nerds.

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