Taxas moderadoras e gestão por privados continuam na proposta do Governo para a Lei de Bases da Saúde

Gestão dos estabelecimentos do SNS é prioritariamente pública, mas temporariamente poderá ser feita por privados e sector social. Proposta do Governo não define as formas de contrato.

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Marta Temido, ministra da Saúde, na apresentação da proposta do Governo de Lei de Bases da Saúde Nuno Ferreira Santos

A proposta do Governo de Lei de Bases da Saúde mantém a existência de taxas moderadoras, com isenções e limites máximos de pagamento, e a possibilidade de unidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS) poderem ser geridas por entidades privadas ou do sector social, embora refira que essa gestão é supletiva e temporária. O diploma faz ainda referência à existência de valores mínimos de financiamento para a saúde.

A Lei de Bases da Saúde foi aprovada nesta quinta-feira, em Conselho de Ministros. Em declarações aos jornalistas antes dessa apresentação, a ministra Marta Temido explicou os quatro eixos da proposta do Governo, que deixa cair em relação à lei de bases actual, que tem 28 anos, a regra de que o Estado deve apoiar o desenvolvimento do sector privado e facilitar a mobilidade dos profissionais entre os sectores público e privado.

“Esta é uma lei que pretende servir o século XXI. Reflecte as tendências da saúde em todas as políticas, a centralidade no cidadão e a saúde global. Por outro lado, procura reflectir as mudanças demográficas e epidemiológicas. A actual lei de bases não fala em cuidados paliativos ou continuados. E esta tem essa preocupação. Há também um abrir de portas à participação das pessoas na construção do sistema de saúde, na definição de políticas, na gestão participada nas organizações de saúde”, começou por explicar Marta Temido.

Sobre a relação entre os sectores público, privado e social, a ministra explica que “a ideia base é que primordialmente a protecção da saúde é assegurada pelo Serviço Nacional de Saúde” e que a lógica de relação com os sectores privado e social “é de cooperação”.

“Entendemos que é aos serviços públicos e ao Estado que incumbe a protecção da saúde, mas obviamente que percebemos que a cooperação entre todos os agentes é fundamental”, disse, acrescentando que "a contratação de entidades terceiras é assumida, mas ela é claramente condicionada à avaliação da necessidade".

Marta Temido afirmou que a relação entre os vários sectores tem ser “uma relação de transparência, de conflitos de interesses minimizados, enquadrados, regulados, onde há um Estado mais forte e garantístico do direito à protecção da saúde e boa utilização de dinheiros públicos e em que os sectores são cooperantes”.

Embora a proposta ainda não seja pública, é já certo que a possibilidade de existirem entidades do SNS geridas por privados ou pelo sector social fica prevista. Este foi um dos pontos mais polémicos da pré-proposta elaborada pela comissão de revisão da lei de bases coordenada por Maria de Belém, que previa que a possibilidade de gestão não publica no SNS. Ideia que caiu numa das primeiras versões da proposta do Governo.

“O que se diz é que gestão dos estabelecimentos do SNS é prioritariamente pública. O que se diz também é que temporariamente, supletivamente, pode ser assegurada por terceiros”, explica a ministra, adiantando que a proposta não refere expressamente a opção pelas parcerias público-privadas ou outro tipo de contratos, como contratos de cooperação semelhantes aos que existem com as Misericórdias.

"Admitimos que, com um horizonte temporal definido por contrato, possa haver outras entidades a fazer a gestão de estabelecimentos públicos. Se são PPP [parceria público-privada], acordos de cooperação ou outro tipo de contrato que se venha a definir por intersecção com outras regras legislativas é algo que nos parece que não devemos estar a constranger", sublinhou.

“Por muito que nos posicionemos do lado de uma gestão pública forte, autónoma, não nos parece que possamos por lei deitar uma espécie de manto sobre tudo o que existe à nossa volta. Neste momento a realidade que temos conta com a gestão privada nalguns estabelecimentos públicos. Coisa diferente seria dizer que iríamos tomar uma atitude de alteração daquilo que é a realidade. Isso não está no programa deste Governo”, disse.

Taxas moderadoras e financiamento

Além das parcerias público-privadas, outro tema de desacordo com o PCP e o BE, partidos que suportam o Governo e que também apresentaram propostas de lei de bases, é a continuidade das taxas moderadoras, que rendem anualmente entre 160 e os 170 milhões de euros. "Na nossa perspectiva são um instrumento de moderação da procura desnecessária e continuam a constar desta proposta com um desenho que reflecte que não são uma fonte de financiamento."

A ministra explicou que, na versão do Governo, as taxas "são previstas com isenções em função da condição de recursos, de doença ou de outras situações de fragilidade especial das pessoas que se entenda salvaguardar e com um tecto máximo". "Está muito próxima do que era a formulação da comissão de revisão tornada pública." A pré-proposta sugeria a existência de limites ao montante a pagar por cuidado e por ano.

A proposta do BE propunha que todos os actos prescritos por médicos fossem isentos de pagamento. Marta Temido admitiu que no futuro, em legislação própria, esse poderá ser uma opção. “Se a taxa moderadora visa moderar o acesso, o consumo indevido e inútil e se é o prescritor que decide o percurso daquele doente encaminhando para um certo consumo, faz sentido que haja uma isenção. O que nos preocupa é que se deixássemos cair as taxas moderadoras, isso poderia dar azo a um risco de consumo excessivo e desenfreado e contrário aos interesses da sociedade.”

Outra mudança em relação à pré-proposta do grupo coordenado por Maria de Belém tem a ver com o financiamento. Nesse primeiro documento previa-se que o financiamento público se devia aproximar da média da União Europeia. Essa referência foi substituída pela referência à existência de um valor mínimo de financiamento.

“A aproximação à média da União Europeia significa que quando a média sobe nós subimos, mas quando a média desce também descemos. Achámos que poderia ter algumas fragilidades e por isso esta questão da referência a valores mínimos. É pela questão da protecção das despesas e da necessidade de controlar as despesas privados e das famílias que optamos por essa formulação”, explicou a ministra. A definição do que serão esses valores terá de ser posteriormente estudada e definida se a proposta do Governo vier a ser aprovada com esta formulação.

Dedicação plena

A iniciativa do Governo abre também a porta à exclusividade dos profissionais, ao referir que se deve evoluir progressivamente para a criação de mecanismos de dedicação plena ao exercício de funções públicas. “Parece-nos que, não sendo a exclusividade algo que tenha de ter um carácter obrigatório ou universal, esse é um caminho que teremos de percorrer”, disse Marta Temido, acrescentando que ter profissionais a circularem entre sector público e privado “traz constrangimentos muito fortes”.

Questionada sobre quais e a quantos profissionais poderia ser proposta a exclusividade, a ministra salientou que esse “será um bom desafio para um novo programa de Governo”.

“Estamos a falar de uma proposta do Governo, mas a Assembleia da República pode entender outra coisa ou fixar já a dedicação exclusiva. A posição do Ministério da Saúde é que este é um caminho que temos de trilhar, mas temos de fazer primeiro trabalho com os sindicatos e perceber exactamente quem, onde e quanto é que isso custa”, disse ainda.

Uma inovação em relação à Lei de Bases da Saúde actual, na proposta do Governo "surgem pela primeira vez bases próprias com referências expressas à saúde pública, saúde mental e saúde ocupacional". Há igualmente "referências ao cuidador informal e uma clarificação do conceito de beneficiários do SNS", garantindo que os migrantes, com ou sem situação regularizada, são beneficiários do sistema público.

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