Por que é que as células cancerosas conquistam território às saudáveis?

Um cientista em Portugal e outro na França desvendaram parte de um mecanismo molecular em que as células tumorais eliminam as células saudáveis.

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Expansão das células tumorais (roxo) e deformação das suas células vizinhas (verde) no tórax de uma pupa de mosca-da-fruta Moreno et al.

A nova descoberta do cientista Eduardo Moreno é sobre a conquista territorial das células cancerosas às células saudáveis. Juntamente com Romain Levayer (do Instituto Pasteur, em França), o investigador do Centro Champalimaud (em Lisboa) percebeu que, quando células saudáveis são comprimidas por células cancerosas, o sinal de uma via celular interna diminui nas células saudáveis e elas acabam por morrer. Há assim uma “vitória” das células cancerosas. Contudo, espera-se que os resultados do estudo publicado esta quinta-feira na revista científica Current Biology possam contribuir para futuras aplicações clínicas.

“As fases iniciais da progressão tumoral, que vão do aparecimento de um punhado de células anormais à formação de uma massa tumoral clinicamente detectável, ainda são pouco conhecidas”, começa-se por assinalar o comunicado da Fundação Champalimaud. Mas já se sabe, por exemplo, que certas mutações genéticas poderão dar uma vantagem competitiva a um pequeno grupo de células, o que lhes possibilita matar e substituir células vizinhas, originando assim um tumor.

“São mutações em genes promotores de cancro chamados oncogenes”, esclarece ao PÚBLICO o cientista espanhol Eduardo Moreno. “Os oncogenes transformam as células em células cancerosas e dão-lhes uma vantagem competitiva. As células cancerosas conseguem assim matar as suas vizinhas e destruir os tecidos, impedindo que cresçam e se expandam.” E quais são os mecanismos por detrás desta competição celular? Não se sabia muito bem.

Tudo ficou mais claro há dois anos quando os dois cientistas identificaram uma nova forma de competição entre células, a competição mecânica. “Esta competição acontece quando demasiadas células tentam sobreviver, crescer e proliferar num espaço reduzido. Isto aumenta a densidade celular e leva à compressão das células, que, quando é demasiado elevada, faz com que as células comecem a morrer”, explica Eduardo Moreno. “Algo que pode acontecer no cancro porque as células cancerosas proliferam sem controlo, o que aumenta o número de células num espaço reduzido no nosso corpo. Portanto, as células [saudáveis] são comprimidas pelo cancro e morrem.”

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O cientista Eduardo Moreno DR

Como uma nova descoberta leva a novas perguntas, os cientistas questionaram-se: que mecanismo molecular faz então com que as células comprimidas sejam eliminadas? Para procurar uma resposta, usaram o epitélio da mosca-da-fruta (Drosophila melanogaster). “O epitélio é o tecido mais comum do nosso corpo. É composto por camadas de células que formam barreiras que separam o interior do exterior”, explica Eduardo Moreno. “Escolhemos o epitélio porque a maioria dos tumores (cerca de 90%) acontece neste tipo de tecido.”

Observou-se então que a via celular interna EGFR/ERK (conhecida por regular a sobrevivência celular) estava envolvida na tal competência mecânica. Ou seja, é usada como uma arma na disputa territorial entre as células tumorais e as saudáveis.

Vejamos o que acontece nessa disputa. Quando as células saudáveis são comprimidas por células tumorais, o sinal dessa via diminui nas células saudáveis. Desta forma, são derrotadas e acabam por morrer. E as células tumorais conquistam assim território.

Viu-se ainda que quando essa via é activada artificialmente em células saudáveis comprimidas, impede-se a sua morte e a expansão de células tumorais abranda. “Fornecemos a primeira prova de uma modulação mecânica da ERK a desempenhar um papel instrutivo para a sobrevivência ou morte celular durante as interacções de competição entre dois tipos de células in vivo, conclui-se no artigo.

Possível estratégia terapêutica

Neste estudo, encontrámos um mecanismo através do qual as células tumorais conseguem matar as suas vizinhas”, resume Eduardo Moreno. E por que não acontece ao contrário e não são as células saudáveis a conquistar território às tumorais? “Porque [as células tumorais] são mais resistentes à compressão e mais difíceis de matar”, responde o cientista, acrescentando no comunicado que, frequentemente, o tumor tem a vantagem de apresentar as vias de auto-eliminação bloqueadas. “Além destas células serem mais proliferativas, também têm todas as vias apoptóticas (auto-eliminação) mutadas, tornando-se assim mais resistentes à morte.”

Embora este estudo já possibilite compreender melhor a competição mecânica celular, Eduardo Moreno frisa que apenas desvenda uma parte do mecanismo. “Por exemplo, ainda não sabemos por que é que as células comprimidas pelas células tumorais reduzem o sinal de sobrevivência da ERK.” Como tal, os cientistas querem compreender como a força mecânica na compressão das células está ligada a uma alteração química como a inibição dos sinais de sobrevivência.

Quando tudo isso se esclarecer, este mecanismo celular poderá então contribuir para futuras aplicações clínicas. “No futuro, poderá ser capaz de proteger células saudáveis da destruição e de manter o funcionamento normal dos órgãos, assim como evitar que os tumores destruam os tecidos do corpo”, indica Eduardo Moreno. Por sua vez, Romain Levayer considera no comunicado: “O que este estudo sugere é que prevenir a eliminação das células saudáveis à volta dos tumores, impedindo assim que a activação dessa via diminua, poderá ser uma nova estratégia terapêutica para deter o crescimento do tumor e reduzir a mortalidade associada ao cancro no futuro.”

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